No coração de Alhandra, município do Litoral Sul da Paraíba, entre o sopro do cachimbo e o vinho da jurema, entre a memória e a mata, a espiritualidade resiste. E floresce. Sob a sombra do sincretismo, é ali que nasce o culto da Jurema Sagrada, uma das mais antigas expressões religiosas de matriz indígena do Brasil. Neste ano, essa tradição secular recebeu um reconhecimento histórico: a Jurema foi oficialmente registrada como patrimônio imaterial do estado da Paraíba, por meio da Lei no 13.760, sancionada no dia 16 de julho.
A proposta foi encampada pela deputada estadual Cida Ramos (PT), que destaca o valor simbólico da medida. “A Jurema não é apenas uma prática religiosa. Ela é símbolo de resistência ancestral, de sabedoria popular, de luta contra a intolerância e o racismo religioso. Reconhecê-la como patrimônio é afirmar que o nosso Estado respeita a liberdade de culto e a diversidade espiritual”, declarou.
Pai Beto, juremeiro, ativista e fundador do Templo dos 12 Reinados da Jurema Santa e Sagrada, participou ativamente da construção do projeto de lei. “É um marco histórico no estado da Paraíba, no que se refere aos praticantes das religiões afro-indígenas brasileiras. A Jurema é pouco compreendida e muito discriminada. Essa lei ajuda a proteger nossa memória e fortalecer a nossa fé”, disse ele, que, há 18 anos, realiza um trabalho de fortalecimento da Jurema Sagrada em Alhandra.
A lei segue a tendência de reconhecimento das manifestações religiosas de matriz afro--indígena como patrimônios imateriais, a exemplo do que já ocorre com o Candomblé na Bahia e com o Tambor de Mina no Maranhão. No caso da Jurema paraibana, o processo de inventário etnográfico e histórico começou em 2023, com apoio de pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da própria comunidade juremeira. A medida visa proteger não apenas os rituais, mas os saberes, os espaços sagrados e a memória ancestral dos praticantes.
O culto à Jurema Sagrada é uma prática de matriz indígena que foi reelaborada ao longo dos séculos em diálogo com elementos afro-brasileiros e cristãos. Seus fundamentos giram em torno dos encantados — entidades espirituais como caboclos, mestres e mestras — que se manifestam por meio do transe durante os rituais. A bebida da Jurema, feita a partir da planta do mesmo nome (Mimosa tenuiflora), é considerada sagrada e canal de comunicação com o mundo espiritual.
Berço da religiosidade
A relação entre Alhandra e a Jurema é ancestral. A cidade, localizada no território da antiga aldeia Aratagui, fundada por frades menores no fim do século 16, é considerada o berço da Jurema Sagrada no Nordeste. O culto surgiu como uma forma de religiosidade própria, ligada aos povos indígenas como os Tabajara, Canindé, Xucurú e Kariri, e resistiu à colonização com práticas espirituais que unem ervas, cantorias, maracás e vinho da árvore. “Aqui está o tronco da Jurema. Muitos mestres começaram nesse chão. A força da mata daqui é especial”, explica Pai Beto.
O primeiro registro do uso ritualístico da planta Mimosa tenuiflora, conhecida como jurema-preta, data do século 18, na região do Brejo paraibano, como aponta o pesquisador Sandro Guimarães Sales, autor do livro “À sombra da Jurema Encantada”, referência nos estudos sobre a Jurema, especialmente em sua relação com a cidade de Alhandra. Segundo ele, “os indígenas foram denunciados ao governador da Capitania de Pernambuco, e, após a denúncia, tropas foram enviadas para o aldeamento com uso de violência. Mesmo assim, o culto resistiu e se espalhou por várias regiões da Paraíba”.
O culto da Jurema, com o tempo, foi reelaborado e sincretizado, dando origem ao Catimbó, que reúne elementos indígenas, católicos, afro-brasileiros e da magia europeia. Para Pai Beto, “a Jurema é a religião primordial do Brasil. Antes de qualquer tradição ou raça chegar, ela já era cultuada pelos povos originários”.
Encantamento
- Templo dos 12 Reinados da Jurema Santa e Sagrada, em Alhandra, é um dos espaços dedicados à tradição de origem indígena
Em Alhandra, as raízes da Jurema estão ligadas a famílias remanescentes da antiga aldeia Aratagui, como a de Mestre Inácio Gonçalves de Barros e sua filha, Maria do Acais, figuras centrais na difusão do culto. A propriedade do Acais, ainda hoje preservada, abriga a capela de São João Batista e o túmulo do Mestre Flósculo. Esses locais, junto ao sítio Estivas, foram tombados em 2015 como patrimônio material da Paraíba pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep).
As “cidades da Jurema” são espaços sagrados, marcados por pés de jurema consagrados a encantados. O Reino de Acais, por exemplo, foi formado por três pés da árvore. Hoje, elas não existem mais. Foram cortadas durante uma madrugada por pessoas intolerantes à expressão religiosa, que nunca foram identificadas. “Um dia, essas árvores estavam aqui. Na manhã seguinte, não tinha mais nada. A gente planta uma jurema, faz o calçamento com fumo, reza e consagra. Só assim ela se torna sagrada. Esses lugares são portais. São moradas dos mestres encantados. Então, arrancar essa árvore é mais do que um crime ambiental, é um crime ao patrimônio material e imaterial da Paraíba”, explica Pai Beto.
As tradições se mantêm vivas, mesmo após décadas de repressão e apagamento. O culto, embora tenha sido influenciado pela Umbanda nas décadas de 1960 e 1970, mantém estrutura e fundamentos próprios. “A Jurema moldou tanto quanto foi moldada, mas, hoje, segue com suas próprias pernas e já tem sua própria roupagem”, destaca Pai Beto.
No Templo dos 12 Reinados, por exemplo, os rituais são realizados com grande responsabilidade espiritual. “As pessoas não chegam aqui e tomam o vinho de jurema sem preparação. A gente orienta, cuida, prepara o corpo e a mente. É preciso ter segurança no uso das ervas, dos cachimbos, dos instrumentos”, alerta Pai Beto. Segundo ele, há um caminho de aprendizado, com desenvolvimento mediúnico, estudos sobre os encantados e práticas de autoconhecimento.
Além das liturgias mensais, o templo acolhe emocionalmente pessoas em sofrimento. “A ansiedade e a depressão estão em alta. A religião é também um espaço de cura”, reforça. Esse cuidado com a saúde mental alia-se à dimensão espiritual da fé juremeira, que entende o corpo, a alma e o mundo encantado como partes de um só sistema.
Luta diária
Apesar do reconhecimento oficial, os praticantes ainda enfrentam discriminação, racismo religioso e violência simbólica. Disfarçada em discursos moralistas, institucionalizada nas escolas e famílias, a intolerância é uma realidade que marca, fere e silencia muitos filhos da Jurema, como alerta a doutoranda em Linguística e praticante da Jurema desde 2022, Thayse Dias. “A intolerância religiosa está dentro das escolas. Eu vivo isso. Mas a Jurema me dá força para continuar. Não porque seja a única religião com compromisso social, mas porque ela é, em sua essência, uma prática de resistência”, pontua.
Para ela, a Jurema não é só uma espiritualidade de cura, mas também de enfrentamento político. “Estamos falando de sujeitos históricos que resistiram: negros escravizados, caboclos, tapuias, o povo cigano, os exus, as pombagiras... Todos carregam em si uma força de resistência contra sistemas de opressão”, defende.
Entre o político e o espiritual, a escolha pela Jurema, segundo Thayse, manifesta-se como um chamado. “A gente também é escolhido. Você sente. E, nesse processo, vem à tona a sua história, a da sua família, da sua ancestralidade. Muita coisa que parecia desconectada passa a fazer sentido”, conta.
Ela defende que seguir a religião é também defender o direito à pluralidade. “A Jurema nos ensina isso: a viver com respeito, com dignidade e com firmeza diante das injustiças”, resume, antes de ser complementada por Pai Beto: “É uma forma de estar no mundo — com os pés na terra e os olhos no invisível, em comunhão com os encantados e com os vivos. É uma religião do presente e do futuro”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de agosto de 2025.