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Juvandi Santos, o divisor de tempos

publicado: 16/06/2025 09h45, última modificação: 16/06/2025 09h45
Confira um panorama da arqueologia paraibana pela perspectiva de um dos maiores profissionais do estado na área, que foi influenciado pela Niéde Guidon
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Pelo projeto PAN Cavernas do Brasil, o paraibano mapeia as cavidades naturais no Parque Nacional da Serra do Teixeira | Foto: Arquivo Pessoal

por Joel Cavalcanti*

Há descobertas que reorganizam o tempo. Um fragmento de osso, um traço de gravura rupestre e uma urna funerária enterrada há séculos ajudam a delimitar o antes e o depois da existência humana. Na arqueologia paraibana, o professor Juvandi de Souza Santos representa esse mesmo divisor de tempos: há um tempo anterior ao seu trabalho e há o tempo que ele ajudou a revelar.

Em mais de três décadas de atuação, suas pesquisas trouxeram à tona civilizações esquecidas, redefiniram a ocupação indígena no estado e colocaram a Paraíba no mapa das grandes descobertas arqueológicas do país. Uma riqueza que ele ajudou a descobrir, preservar e revelar ao mundo. Durante esse percurso, foi influenciado e se encantou pelo maior nome de sua especialidade: Niéde Guidon.

“Na verdade, Niéde é uma referência para o mundo inteiro. Uma pessoa formidável. O mundo perdeu uma grande cientista, uma grande arqueóloga — e nós perdemos uma grande mulher. E tinha um certo medo dela. Brava mesmo, como a gente diz por aqui. Mas uma figura extraordinária”, lembra, aos sorrisos, o professor sobre a arqueóloga paulista, morta no início do mês, aos 92 anos.

Guardadas as devidas proporções, e em termos de dedicação a uma área geográfica, a Serra da Capivara, no Piauí, estava para Guidon assim como o Cariri, o Catolé do Rocha e o Seridó da Paraíba estão para Juvandi Santos. “E o Sertão... o Sertão é fora do comum. Uma riqueza paleontológica enorme, além da presença tupi. A Paraíba é fantástica”, afirma o professor.

Essa é uma história que começou em 1981. O pai de Juvandi, um vendedor de pilhas, levou o adolescente, com cerca de 14 anos, para visitar o Parque dos Dinossauros, em Sousa. Um passeio que aguçou, definitivamente, a curiosidade do jovem que, aos 22 anos, já estava formado em História e com a ideia de fazer Arqueologia ou algum curso na área de paleontologia.

Das riquezas

Uma das principais contribuições de Juvandi para revelar o porquê de a Paraíba ser fantástica está descrita em seu livro de número 41, que mudou completamente a compreensão da ocupação indígena no estado. Até recentemente, acreditava-se que, na chamada sertania paraibana, os tupis habitavam basicamente o litoral e suas proximidades. Já no interior, a ideia era que só houvesse os cariris e os tarairiús.

“Mas a nossa pesquisa mostrou evidências arqueológicas claras também da presença tupi e aratu no interior. Para se ter uma ideia da importância disso, hoje, já são 21 sítios tupis identificados no interior da Paraíba, todos com farto material arqueológico — urnas funerárias, tigelas, adornos corporais e materiais líticos, — e mais seis sítios aratus também com bastante material, inclusive urnas funerárias e ossadas humanas”, descreve ele.

Ele cita tudo isso com uma empolgação similar à da que provavelmente tinha quando visitou o Vale dos Dinossauros. E não é para menos. Os sítios tupis e aratus no interior mudaram completamente a história da ocupação indígena na Paraíba. Mas o professor também desenvolveu outras duas grandes pesquisas.

Uma foi na Área de Proteção Ambiental (APA) das Onças, no município de São João do Tigre, uma unidade de conservação do estado com 300 mil hectares, superada apenas pelo Parque Nacional da Serra do Teixeira. Há cerca de quatro anos, o interesse de Juvandi Santos mirou a a região polarizada pela cidade de Catolé do Rocha.

“Encontramos uma quantidade impressionante de sítios arqueológicos com gravuras rupestres. Ali o forte são as gravuras — pinturas são pouquíssimas. Mas a qualidade e a quantidade são realmente notáveis. A Paraíba tem uma riqueza arqueológica, paleontológica e espeleológica fora do comum”.

A qualidade diferenciada das gravuras rupestres está diretamente ligada ao suporte rochoso sobre a qual foram feitas. Segundo o professor, existem três técnicas básicas utilizadas na confecção dessas gravuras: o picoteamento, o riscamento e o que ele chama de “meia cana” — técnica essa observada no sítio arqueológico da Pedra do Ingá.

Juvandi (à dir.) e o historiador Thomas Bruno (à esq.) num dos encontros com Guidon (no centro), uma das mais importantes arqueólogas brasileiras, morta no último dia 4, aos 92 anos

No Seridó, as gravuras revelam uma diversidade maior, com a ocorrência das três técnicas, o que indica a presença, possivelmente, de diferentes fases ou grupos culturais. Além disso, o Seridó destaca-se não apenas pela quantidade de sítios arqueológicos, mas também pela complexidade deles. Esse território era, inclusive, o local de habitação de um dos grupos indígenas mais fascinantes da história do Nordeste: os tarairiús.

Extintos ainda no século 17, os tarairiús foram aliados dos holandeses durante a ocupação do Brasil e, por isso, duramente perseguidos pelos portugueses. Um traço marcante dessa etnia era o endocanibalismo — prática ritual em que os mortos eram consumidos pelos vivos —, o que explica a ausência de cemitérios tarairiús, ao contrário do que ocorre com outros povos.

É tudo isso que faz Juvandi não ter dúvidas em exaltar a riqueza encontrada na Paraíba. “E nem estou falando dos sítios paleontológicos, como os da bacia sedimentar do Rio do Peixe, na região de Sousa. Aquilo é formidável. Está entre as principais ocorrências de icnofósseis e dinossauros do planeta Terra. Nem é só do Brasil — é do planeta Terra”.

Guidon e aposentadoria

Juvandi Santos conheceu Niéde Guidon em 2006, quando foi ao Piauí para ter aulas com a pesquisadora, durante a parte técnica de seu mestrado. Esse contatoiria se repetir algumas vezes. Por dois anos, durante o doutorado, Juvandi enviava os materiais de pesquisa para sua maior referência na profissão. “Era uma pessoa altamente receptiva. Se você aparecesse por lá, mesmo como turista, e ela estivesse presente, recebia todo mundo com a maior tranquilidade”.

As conversas eram sempre acadêmicas. “Ela sempre elogiava muito a Paraíba, destacava a riqueza arqueológica do nosso estado. Umas duas vezes, inclusive, nos parabenizou pelas pesquisas que vínhamos desenvolvendo na região”.

Dois aspectos principais ajudam a entender a admiração por sua mestra. “O primeiro era o conhecimento que ela tinha. Era impressionante. Tive excelentes professores durante o doutorado em Porto Alegre e, para entender, por exemplo, a cadeia operatória de material lítico, a gente levava um semestre inteiro. Niéde, em uma tarde, deu uma aula de 45 minutos sobre esse tema que foi simplesmente extraordinária. Uma didática fora do comum”.

Já o segundo ponto destacado por Juvandi era a responsabilidade de Guidon. Mesmo morando e trabalhando na França, ela fazia questão de ir ao Piauí uma ou duas vezes por ano. “Ela transformou o Sertão do Piauí no que é hoje. Estamos falando de um dos parques mais importantes do mundo. A Serra da Capivara é Patrimônio da Humanidade. Isso diz tudo”.

Hoje, Juvandi Santos acumula muitas funções, um corpo debilitado e um sonho de aposentar-se e desbravar o mundo — sem obrigações profissionais. Ele ainda coordena o Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), que ele mesmo fundou. É professor da pós-graduação em Medicina Translacional, no Ceará. Também atua na UEPB como professor e coordenador da pós em História Local.

Santos acaba de criar a pós-graduação em Paleontologia e Conservação do Patrimônio, que funcionará em Sousa. Participa de diversos projetos em arqueologia, paleontologia e espeleologia. É curador e diretor do Museu de História Natural, além de coordenar a Reserva Técnica do laboratório. Também coordena o Grupo Paraíba de Espeleologia — o único especializado no estudo de cavernas no estado.

Com sérios problemas de circulação e ácido úrico, ele espera largar sua profissão em mais quatro anos. “Hoje, tenho orientandos no doutorado da Universidade Federal do Ceará que, tenho certeza, muitos devem voltar à Paraíba e continuar as pesquisas. Tem também ex-alunos da UEPB, principalmente do Seridó, que se envolveram, profundamente, com a preservação dos sítios arqueológicos e paleontológicos da região”.

A segurança para reorganizar seu próprio tempo e delimitar o antes e o depois de sua existência reside nas novas gerações. “Se eu não me aposentar, essa nova geração que estamos formando não vai ter oportunidade. E a meninada está com um gás fora do comum. Tem gente com 25, 26 anos já doutorada, com novas metodologias e novas tecnologias. Eles dominam Informática, Química e Física — ciências essenciais para a arqueologia”.

A trajetória de Juvandi Santos é, por si só, uma linha do tempo. Há um tempo anterior ao seu trabalho e há o tempo de jovens cientistas que ele e Guidon ajudaram a revelar. “Então, acho que, quando chega o tempo de se aposentar, é hora de sair de cena e dar espaço. Quero aproveitar, viajar pela Argentina, por Portugal... quem sabe fazer parte do Caminho de Santiago, se eu melhorar dos pés. A ideia é essa”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de junho de 2025.