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Marcos de um estado de terror

publicado: 14/07/2025 09h36, última modificação: 14/07/2025 11h25
Espalhadas por João Pessoa, placas indicam exposições públicas de corpos dos “traidores” da coroa portuguesa
20200930_conflitos historicos em joão pessoa_igreja de lourdes © roberto guedes (62).JPG

Fotos: Roberto Guedes

por Marcos Carvalho*

Quem passa às pressas pela Rua Trincheiras, em João Pessoa, mais precisamente na esquina com a Av. João Machado, onde fica situada a Igreja Nossa Senhora de Lourdes, não deve imaginar que aquele local foi palco, há mais de 200 anos, de uma cena de terror: a exposição da cabeça e das mão do jovem de 19 anos, José Peregrino Xavier de Carvalho, que havia sido enforcado no Recife, em 1817, por ter participado do movimento republicano que pregava a separação das capitanias do Nordeste brasileiro, incluindo a Paraíba, da corte portuguesa. 

Placa na Igreja Nossa Senhora de Lourdes, em João Pessoa, indicando o local de exposição da cabeça e das mão do jovem separatista José Peregrino Xavier de Carvalho, em 1817

Esse fato só não passa despercebido por alguém mais atento graças a uma placa indicativa, afixada por ocasião do centenário do ocorrido, pelo Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP). O presidente da entidade, o historiador e escritor Jean Patrício, informa que a ação, realizada na gestão do presidente Flávio Maroja, no início do século passado, tinha por objetivo registrar determinados fatos históricos da Paraíba, mas também precisa ser retomada hoje. “Existem outras placas pela cidade, que são frutos de determinados momentos da história. E é uma iniciativa muito interessante, que o instituto, com os entes públicos e a iniciativa privada, poderia pensar até numa restauração”, sugere.

As placas afixadas pelo IHGP recuperam a memória dos locais nos quais foram executadas punições exemplares aos participantes da Revolução de 1817, conhecida também como Revolução dos Padres ou Revolução Pernambucana, e que é considerado um dos conflitos mais sangrentos da capital paraibana. Os outros locais de João Pessoa que guardam as marcas do terror do Estado Português no Brasil Colônia são uma casa em ruínas, situada na ladeira São Pedro Gonçalves, às margens da ferrovia, em frente à qual foram expostas a cabeça e as mãos de Amaro Gomes Coutinho, outro líder da revolta, e a Praça Rio Branco (onde acontece o Sabadinho Bom), onde foram expostas a cabeça e as mãos de Francisco José da Silveira. O Mosteiro de São Bento, na Rua General Osório, nº 36, no Centro da capital, foi lugar onde os revolucionários paraibanos  renderam-se às tropas portuguesas e também possui uma placa alusiva ao fato. Segundo investigação feita pela historiadora Serioja Mariano, na cidade de Parahyba, ao menos cinco participantes do movimento tiveram partes de seus corpos expostos em locais públicos.

O dado, recuperado pela professora de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Ariane Sá, corrobora a ideia de um “terror” do estado. “A existência do pelourinho nas cidades para punir os escravizados, os castigos, as execuções e as exposições públicas de corpos eram utilizadas como instrumentos de controle social e político”, explica a docente.

A historiadora lembra que a responsabilidade pela justiça era dos governadores e ouvidores, que tinham poder de julgar e aplicar punições, incluindo a pena de morte. Os casos mais graves eram julgados por um Tribunal da Relação, que também possuía o poder de revisar as decisões dos governadores e ouvidores. “Em relação à punição, que ocorreu em 1817, as ordens vieram diretamente de D. João VI que, desde 1808, estava instalado no Rio de Janeiro com sua corte. Após adiar sua festa de aclamação do soberano do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em decorrência do movimento sedicioso, D. João VI ordenou que as punições aos participantes do movimento de 1817 fossem severas e exemplares, para que algo do tipo jamais voltasse a acontecer”, detalha Ariane Sá.

Indicar locais da prática de tamanho horror praticados pela coroa portuguesa, como os que ocorreram com os participantes do movimento separatista na Paraíba, pode até parecer chocante, mas podem servir para, de alguma forma, dar exemplo, agora, do que não deve acontecer. “A existência de placas e monumentos em uma cidade criam uma conexão entre o passado e o presente e permitem que as gerações atuais e futuras entendam melhor a importância dos eventos históricos ocorridos em sua cidade. No caso da placa na Rua Trincheira, na Igreja Nossa Senhora de Lourdes, em João Pessoa, essa memória serve como um lembrete da história do movimento de 1817 e pode levar as pessoas a terem um maior interesse pela história local, encorajando-as a aprender mais sobre o assunto”, argumenta a professora Ariane. Segundo ela, demarcar os locais onde ocorreram fatos históricos é uma forma de preservar a história e a cultura de uma cidade, pois ajuda a definir a identidade de seus moradores e criar um senso de pertencimento da comunidade, além de ser um recurso educacional.

Afixadas pelo IHGP por conta do centenário (em 1917), placas detalham as punições exemplares aos participantes da Revolução de 1817, conhecida também como Revolução dos Padres

Algumas das placas afixadas pelo IHGP estão se apagando, mas boa parte da população quase não as nota. Quantos outros locais que guardam eventos históricos, na capital paraibana, sem placa, continuam apagados? As belas ruas, casarios e igrejas da terceira cidade mais antiga do Brasil reclama por ser mais conhecida, sobretudo, de seus moradores. “Falta investimento para que saiamos da categoria de cidade praiana e consolidemos um turismo histórico, que é mais sustentável e atraente para turistas interessados em aprender sobre a história da cidade e sua importância cultural. Para isso, seria interessante que o Poder Público investisse mais em iluminação, segurança e sinalização digital para identificar cada rua, prédio e igreja, com narrativas sobre a história e a importância cultural da cidade”, defende a professora Ariane.

Normas do medo

As leis penais aplicadas pela coroa portuguesa no período do Brasil Colônia ficaram conhecidas como Ordenações Filipinas, um conjunto de normas compiladas. O Livro V, chamado de Libri Terribilis (livro terrível ou livro do terror, em tradução livre), era o que trazia as sentenças, cuja principal característica era a intimidação pelo terror, visando impor medo para que as pessoas se submetessem ao Estado sem a possibilidade de questioná-lo.

Dentre as penas aplicadas, constavam a “morte natural”, que era o enforcamento, e a “morte natural para sempre”, que deixava o enforcado pendente até cair podre sobre o solo, sem ser sepultado. Já o condenado à “morte natural cruelmente” era esquartejado e os seus restos mortais expostos, os seus bens eram confiscados e o crime atingia descendentes até a quarta geração.

Na sentença de condenação de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, consta que deveria ser “conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica onde, em o lugar mais público dela, será pregada em um poste alto, até que o tempo a consuma e o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em postes, pelo caminho de Minas, no sítio da Varginha e das Cebolas, onde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações, até que o tempo também os consuma”.

O caso de Tiradentes também é ilustrativo de uma espécie de “delação premiada” prevista nas Ordenações Filipinas. Os que denunciassem conspiração contra a Coroa portuguesa antes que fosse descoberta poderiam ficar isentos da pena.

Talvez, pensando nisso, é que o pai do jovem José Peregrino Xavier de Carvalho o convenceu, tendo nas mãos um crucifixo nas mãos, a se entregar às tropas reais. A vida do rapaz, no entanto, não foi poupada. A cena do pedido do pai foi imortalizada em óleo sobre tela pelo artista Antônio Parreiras (1860––1937), que adorna o Salão Nobre do Palácio da Redenção, sede do Governo da Paraíba.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de julho de 2025.