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Navegando pelas águas do Samuraguai

publicado: 07/07/2025 09h34, última modificação: 07/07/2025 09h35
No Brasil-holandês, assassinato do segundo governador revela nome original do Rio Paraíba
Dicionário das Batalhas Brasileiras - Ibrasa.jpg

Imagem: Reprodução/Ibrasa

por Ademilson José*

Apesar de a historiografia do período colonial registrar o nome do principal rio do estado como Paraíba, há relatos de que, em termos de nomenclatura original, o verdadeiro batismo era de origem indígena, mas bem diferente do que é conhecido atualmente e sem qualquer citação ou reconhecimento na história oficial.

Ao fazer uma pesquisa mais cuidadosa e mais voltada aos povos originários, no seu Dicionário das batalhas brasileiras, o historiador paulista Hernâni Donato fez um registro que, de certa forma, chama-nos a atenção quando trata-se do nosso maior rio.

Ao documentar o assassinato do segundo governador da Paraíba no Brasil-holandês, Ippo Eyssens, o historiador observa textualmente que o fato se deu em “14 de outubro de 1636, no Engenho Espírito Santo, à marge direita do Rio Samuraguai”.

Editado pela Ibrasa (SP), em 1987, o dicionário de 600 páginas conta a história do Brasil a partir das guerras que vão desde àquelas travadas entre indígenas e invasores, aos conflitos urbanos das últimas décadas do século passado. Os verbetes, em termos de fatos, não entram em detalhes, mas são muito densos em registros. Em certos momentos, até demais.

Por isso ficou por nossa conta pesquisar a parte que o engenho foi fundado, em 1600, sendo de propriedade do capitão Manoel Pires Correia, e que logo depois do começo do Brasil-holandês na Paraíba, em 1634–1635, passou para o domínio do batavo Joan van Olen. Como maior empreendimento da região, era sempre frequentado pelas autoridades, inclusive o governador.

Um dado, no mínimo, curioso é que mesmo o assassinato do governador sendo um fato de 1636, quando a Paraíba já estava com quase 100 anos de conflitos, envolvendo indígenas e invasores às margens e na foz do rio, desconhece-se qualquer registro sobre o verdadeiro e original nome do Rio Paraíba.

Ainda mais quando se sabe que esses conflitos são bem mais intensificados desde 1574 quando, ajudados pelos franceses e para resgatar a filha de um cacique da Serra da Copaoba (hoje, cidade de Serra da Raiz), os potiguaras da Paraíba incendiaram um grande engenho e mataram mais de 600 portugueses, protagonizando, assim, a famosa Tragédia de Tracunhaém, em Goiana, Pernambuco.

Foi, inclusive, depois daquela tragédia que mesmo Portugal ainda não tendo conseguido ocupar o território paraibano, por decreto, Dom Sebastião resolveu criar a Capitania da Paraíba e orientar suas tropas a, se possível, dizimar os indígenas da região. Em todo esse momento de fartos acontecimentos, o nosso principal rio foi sempre tratado como Paraíba, sem qualquer referência ao nome original ou ao que tinha antes da chegada dos primeiros invasores.

Aliás, da Tragédia de Tracunhaém, em 1574, até a conquista, em 5 de agosto de 1585, foram cinco expedições portuguesas e/ou luso-espanholas (depois da União Ibérica) fracassadas ou derrotadas na foz do rio, em Cabedelo. Caso não seja um equívoco — e não há registro disso —, a informação do dicionário de Hernâni Donato torna-se válida ao menos para confirmar que se o nome “Paraíba” surgiu das dificuldades de conquista, o rio naturalmente tinha mesmo um outro nome e o que faltava, realmente, era somente o conhecimento da população.

Nem o livro de Hernâni Donato e nem outros dicionaristas consultados detalham o significado, mas, tomando-se por base o próprio nome potiguara samuraguai tende a ter origem em samurai (o utensílio de pesca), mais guai (“comida”, “comer”), resultando em samuraguai. A proposta de tradução é baseada no nome do próprio povo que, nos dicionários do tupi, significa “comedor” (guara) de “camarão” (poti), potiguara, sem prejuízo de inversão de posição das duas palavras.

Outro dado que veicula o dicionário de Hernâni Donato E está correto é que se originando de “porto ruim”, o nome Paraíba (junção da palavra pará — “porto”, com íba — “ruim”, em tupi) só deve ter surgido mesmo depois das dificuldades de conquista, das cinco expedições ocorridas entre 1574 (Tragédia de Tracunhaém) e 1585 (ano da conquista). Ou seja, “Paraíba” não era um nome que os indígenas já usavam, mas um termo criado pelos invasores e gerado da situação de dificuldades que enfrentaram para instalarem-se.

Diante do inusitado, o dicionário de Hernâni Donato não especifica a fonte originária, mas é interessante porque revela um nome que, pelo menos para os indígenas, deveria ser mesmo o nome do nosso maior rio; nome que, como tantas outras coisas, foi omitido pelos cronistas e escribas dos invasores e, infelizmente, também pela historiografia tradicional.

Outro dado comprovador de que Donato está correto e de que o nome Rio Paraíba só passa a existir depois das expedições fracassadas é que três dias depois de conseguirem o apoio dos tabajaras e anunciarem a conquista da Paraíba, os portugueses ainda dão um outro nome (São Domingos) ao mesmo rio.

No dia 8 de agosto de 1585, fazendo a navegação de reconhecimento e em direção oposta ao Litoral, Martim Leitão estabeleceu esse nome em homenagem ao santo do dia. E como tudo ou quase tudo homenageava o santo do dia (por isso a cidade foi Nossa Senhora das Neves), o rio não poderia fugir à regra. Mas fugiu, certamente porque as dificuldades e as complicações de conquista foram maiores.

O registro do historiador de Dicionário das batalhas brasileiras termina sendo valioso também. Acima de tudo porque o Samuraguai deve ter sido encontrado em fontes que valorizam os povos originários, ao invés das dificuldades portuguesas e de invasão. Trata-se de uma fonte que deve ser buscada e melhor mais explorada.

Natural de Botucatu, em São Paulo, Hernâni Donato (1922–2012) escreveu várias obras sobre a história do Brasil e, além do dicionário, é muito conhecido também pelo livro Os povos indígenas no Brasil. Além de escritor, ele também foi professor, tradutor, roteirista e ocupou a cadeira 20 da Academia Paulista de Letras.

Corrupção e tirania

Já que o assassinato de um governador não é um fato qualquer, para que essa história não fique incompleta, faz-se necessário continuar. Ippo Eyssens, o governador assassinado, talvez só tenha um único mérito: sucedeu e antecedeu os dois mais importantes governadores da Paraíba, no período do Brasil-holandês, Servaes Carpentier e Elias Herckmans, respectivamente.

Muitas vezes é documentado apenas como derrotado numa batalha travada com tropas portuguesas de Francisco Rebelo (o Rebelinho), mas, na verdade, não foi bem assim. Analisando bem os personagens, o contexto e o clima do momento histórico, não houve heroísmo nenhum da parte do Rebelinho.

É porque, corrupto e cruel no exercício do governo, Ippo era desses que abusava em usar o poder para crescer em seus negócios, principalmente nos seus engenhos, além de costumar maltratar inimigos e presos de guerra. Mandava amarrá-los para serem arrastados por cavalos pela principal rua da cidade.

Conhecido por sua administração violenta e desonesta, e por ter apropriado-se dos melhores engenhos da capitania, Ippo Eyssens contava com a antipatia e aversão, inclusive, dos indígenas potiguaras, que eram aliados e haviam ajudado os holandeses a conquistar a Paraíba. Em vez de lutarem juntos, muitos indígenas e outros aliados desapareceram nos canaviais quando Ippo foi atacado.

Em seu livro Governantes do Período Colonial, o médico e historiador Guilherme D’Ávila Lins (1941–2023) revela que sobre Ippo Eyssens pesava ainda outros tipos de acusações. “Tentou obrigar o velho Duarte Gomes da Silveira a lhe dar uma sobrinha-neta em casamento. A negativa de Duarte lhe rendeu uma arbitrária e cruel prisão no forte do Cabedelo, durante o período de 11 meses”.

Ippo Eyssens, segundo D’Ávila Lins, “chegou a Pernambuco, a 16 de outubro de 1634, como membro do conselho político do governo neerlandês. Foi diretor da Capitania de Itamaracá e, em 1636, já era diretor da Capitania da Paraíba, exercendo o governo com fama de tirano. Mas isso até a noite de 14 de outubro de 1636, quando foi morto no engenho Espírito Santo”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 6 de julho de 2025.