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Nos trilhos de Servaes Carpentier

publicado: 08/09/2025 09h05, última modificação: 08/09/2025 09h05
Livro reúne os relatos do 1º governador da PB no período e será lançado por grupo do Iphaep no sábado (13)
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Na época de Servaes, João Pessoa tinha o nome de Frederika, como no mapa | Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal/Reprodução

por Bruna Bernardon e Ademilson José (Especial para A União)*

O Grupo de Pesquisa em História do Brasil--holandês do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep) realiza, no próximo sábado (13), o lançamento de sua terceira publicação, desta vez dedicada a Servaes Carpentier, o primeiro governador da Capitania da Paraíba, no período de dominação neerlandesa. Trata-se da plaquete Dr. Servaes Carpentier: Relatório sobre a Capitania Holandesa da Parahyba. O evento está agendado para acontecer a partir das 10h, na Livraria do Luís da Galeria Augusto dos Anjos, no Centro de João Pessoa, e promete lançar luz sobre uma figura até hoje pouco conhecida da história colonial brasileira.

Idealizador e organizador da publicação, juntamente com o historiador Edvaldo Lira e o jornalista Ademilson José, o antropólogo e sociólogo Carlos Azevedo informa que o lançamento dá sequência a uma série que o grupo vem realizando desde sua criação, há cinco anos, e sempre em parceria com a Ideia Editora. A primeira publicação foi Adeus ao Brasil — carta de despedida de Maurício de Nassau (2023) e a segunda foi Descrição Geral da Capitania da Paraíba (2024), de Elias Heckman. Agora, chega a vez dos relatos de Carpentier, um médico e administrador de perfil prático e muito diferente do tom literário e poético de Elias.

A plaquete inclui o relatório sobre a Capitania da Parahyba, que é seguido de uma cronologia sobre vida e a obra de Servaes Carpentier. A obra ainda contém um artigo assinado pelo próprio professor Carlos Azevedo, o qual, como na primeira publicação, encarregou Ademilson José de fazer a apresentação da obra. 

Carpentier esteve na expedição holandesa que conquistou a Paraíba em dezembro de 1634 e, de 1635 a 1636, esteve à frente do governo da capitania. Embora não tenha promovido grandes obras urbanas como as que transformaram Recife no período de Nassau, deixou marcas importantes na ocupação neerlandesa.

Ele foi responsável pela reforma da fortaleza de Cabedelo, pela mudança do nome de João Pessoa — à época, a cidade era chamada de Filipeia de Nossa Senhora das Neves — para Frederika e, sobretudo, pela assinatura do Pacto da Paraíba, em 13 de janeiro de 1635. O pacto foi um acordo pioneiro para a época: buscava garantir a convivência religiosa entre católicos, judeus e calvinistas em uma região marcada por tensões e disputas de fé.

Embora não tenha eliminado todos os conflitos, Carpentier ajudou a reduzir choques mais graves e tornou-se referência em todo o Brasil Holandês. Nos seus relatos, também descreveu aspectos econômicos e naturais da capitania, destacando a riqueza da flora, da fauna e da cana-de-açúcar. “Carpentier era um homem prático, com vocação para senhor de engenho e se estabeleceu em Goiana, onde adquiriu três engenhos”, informa Azevedo, acrescentando que, talvez por não ter as mesmas habilidades como empresário rural, seus engenhos terminaram falindo e gerando enormes dívidas para a família.

O professor observa que, apesar disso, como governador, Servaes Carpentier teve papel fundamental ao tentar construir um ambiente de tolerância e de paz social em um momento no qual a intolerância era regra. Para Azevedo, o lançamento da plaquete também reforça a necessidade de revisitar a história daquele período, muitas vezes tratado de forma superficial. “Nossa historiografia ainda é muito pautada pelo olhar português, que reduz o Brasil Holandês a uma ocupação passageira. Só que o período foi rico e complexo, tanto para o Brasil quanto para a própria Holanda”, explica.

Segundo o antropólogo, os registros feitos pelos holandeses, inclusive os de artistas trazidos por Maurício de Nassau, oferecem perspectivas únicas sobre a vida cotidiana na colônia. “Enquanto os portugueses pouco se preocuparam em registrar o que estavam ocupando, os holandeses nos deixaram uma documentação visual e escrita muito ampla, que nos ajuda a compreender a diversidade cultural do século 17”, completa.

Estrategista e administrador

Os organizadores da publicação preferem que os dados do Relatório sejam conferidos pelos leitores no próprio livro, mas antecipam mais relatos sobre o próprio Carpentier. Na parte administrativa, ele dedicou-se, inicialmente, a melhorar as condições de saúde e higiene da cidade, além de buscar estabelecer diálogo com os donos de engenhos, destacadamente com o investidor Duarte Gomes da Silveira.

Sua gestão, conforme relata o historiador Guilherme d’Ávila Lins, no seu livro Governantes da Paraíba no Período Colonial, foi marcada também por esforços na promoção da agricultura e no comércio local, áreas que eram vitais para a economia da província. Como a Paraíba oferecia terreno fértil, incentivou a produção de mandioca, que foi muito importante para a alimentação da população da cidade e de outras partes do Brasil-holandês, fazendo o mesmo com o açúcar, já que o produto tinha muito valor de exportação para o mercado europeu.

Depois do período na Paraíba, quando atuava como secretário do Alto Conselho do Governo de Maurício de Nassau, Carpentier elaborou as Instruções Gerais para Escabinos e Escoltetos do Brasil, que visavam regulamentar o funcionamento das câmaras municipais e dos juízes locais. Embora não tenham tido a mesma notoriedade do seu relatório, essas instruções demonstraram o envolvimento e a habilidade de Carpentier na organização administrativa dos neerlandeses.

Nas participações de expedições militares, destacou-se também como bom estrategista ao conduzir as articulações que atraíram para as tropas holandesas o mameluco Domingos Fernandes Calabar, peça fundamental nas conquistas da Paraíba e de Igaraçu. Durante esse período, os dois estreitaram tanto a amizade que acabaram se tornando compadres.

No livro Igreja e Estado no Brasil-holandês, Frans Leonard Schalkwijk registra inclusive que, além de Servaes Carpentier, “no batismo do filho de Calabar, também estavam presentes os coronéis Sigismund von Schoppe e Chrestofle Arciszewski, o almirante Jan Cornelisz Lichthart e uma senhora da alta sociedade. O pastor oficiante foi o reverendo Daniel Schagen”.

Professor defende atualização do olhar sobre figuras da época

Sobre o grupo de pesquisa do Iphaep, Carlos Azevedo conta que nasceu quase por acaso. “Eu e o historiador Edvaldo Lira nos reunimos, inicialmente, para estudar somente a obra de Elias Heckman. Mas, diante da riqueza do material que fomos encontrando, decidimos ampliar os encontros e formar um coletivo. Hoje, o grupo reúne arquiteto, artista visuais, jornalista e bibliotecário, em uma abordagem multidisciplinar”, relata.

Carlos Azevedo, pesquisador e organizador do livro, é, também, um apaixonado pela História | Ilustração: Tônio

As reuniões acontecem sempre na primeira terça-feira do mês e discutem textos relacionados ao Brasil--holandês e ao século 17 de um modo geral. Além de fontes primárias, o grupo analisa também questões mais amplas, como comércio internacional, relações com o Caribe e até mesmo o papel da pirataria no sistema mercantilista.

Azevedo lembra que sua paixão pelo tema vem de longa data. Durante os 26 anos em que viveu na Alemanha, amadureceu o interesse pela Holanda e pelo Brasil-holandês, embora só pudesse se dedicar de fato após retornar ao Brasil. “Nos compêndios escolares, esse período aparece em poucas linhas, quando, na verdade, é um dos momentos mais curiosos da nossa história”, diz ele.

Para o professor, “até mesmo figuras como Calabar merecem e precisam ser revisitadas. Ele não foi traidor da pátria como costuma ser tratado. E não foi porque nem existia pátria naquela época. Foi um agente histórico dentro de um contexto específico”, defende.

O grupo pretende ampliar sua atuação e, entre os projetos em pauta, estão viagens e visitas a locais que fizeram parte do circuito holandês no Brasil e no Caribe, além de uma comunicação mais próxima tanto com a comunidade acadêmica como também com o público em geral. Para novas publicações, estão previstas pesquisas sobre a pirataria no Atlântico e um estudo do professor Edvaldo Lira sobre a presença judaica, incluindo uma sinagoga que funcionou no século 17 na capitania da Parahyba.

“Mas, por enquanto, todas as atenções estão voltadas mesmo para o novo lançamento porque, mais do que recuperar um relato antigo, também é uma forma de olhar de maneira crítica para a nossa história, tirando-
-a da sombra de uma historiografia antiquada e oferecendo novas interpretações para o público”, conclui.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 7 de setembro de 2025.