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O Compadre de Calabar

publicado: 26/05/2025 09h35, última modificação: 26/05/2025 09h35
Grupo do Iphaep prepara, para o próximo semestre, uma publicação sobre Servaes Carpentier, o primeiro governador da Paraíba no período do Brasil-holandês
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Depois de abandonar as tropas lusitanas e aderir ao Brasil-holandês, Domingos Fernandes Calabar batiza o seu filho, um fato que teria sido maior que o da “traição política” | Ilustração: Bruno Chiossi

por Ademilson José*

Depois de resgatar a Carta de Despedida de Maurício de Nassau e uma nova edição da Descrição de Elias Heckman, o Grupo de Pesquisa em História do Brasil-holandês, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep) anuncia, para o próximo semestre, uma nova publicação. Desta vez, sobre o médico Servaes Carpentier, primeiro governador da Paraíba no período do Brasil-holandês.

“Trata-se de um personagem, cujo resgate chega a ser uma necessidade da parte do nosso grupo, e é um governante de fundamental importância no período colonial”, afirma o sociólogo e antropólogo paraibano Carlos Azevêdo, idealizador e principal organizador da publicação que, como nas vezes anteriores, vem com o selo da Ideia Editora.

Azevêdo conta que, além da íntegra do Relatório Sobre a Capitania da Paraíba, Carpentier será retratado desde o nascimento e os primeiros estudos nos Países Baixos, passando pela sua participação na ocupação da Paraíba, em dezembro de 1634, e pelo período de governador, entre 1635 e 1636.

Ocorrida precisamente pela foz que o Rio Jaguaribe tinha, na separação entre os bairros do Bessa e de Intermares, a ocupação holandesa estabeleceu um novo nome para a cidade (Frederika), além de sediar uma série de transformações econômicas e sociais, entre elas, a assinatura do Pacto da Paraíba, medida válida para todo o Brasil-holandês e que se constituiu no primeiro documento a tratar de liberdade religiosa nas Américas.

Como nossa velha “história portuguesa do Brasil” é muito alheia a tudo o que não é fado, vale aproveitar esses registros e resgates para lembrar que outros dados, no mínimo curiosos, também marcaram aquele momento da história da Paraíba. A começar pelo fato de, como comandante de tropas, o doutor Carpentier não ter chegado sozinho.

Entre 1631 e 1634, as tentativas de ocupação da Paraíba foram três, a última delas com êxito graças às estratégias de um brasileiro que, por meio das articulações de Carpentier, acabara de abandonar as tropas lusitanas e aderido ao Brasil-holandês: Domingos Fernandes Calabar.

Ele e o comandante holandês estreitaram tanto a amizade nas reuniões de planejamento de ocupação que acabaram se tornando compadres. Com Calabar sendo um indivíduo estimado e respeitado junto ao staff, inclusive, religioso dos batavos. Prova disso é que, quando seu filho nasceu, foi batizado na Igreja Reformada de Recife. O livro de batismo registra que, no dia 20 de setembro de 1634, Calabar esteve ao lado da pia batismal com o seu filho nos braços.

O menino recebeu o mesmo nome do pai, Domingo Fernandus, e como testemunhas, ali estavam o alto conselheiro Servatius Carpentier, o coronel Sigismund von Schoppe, o coronel polonês Chrestofle Arciszewski, o almirante Jan Cornelisz Lichthart e uma senhora da alta sociedade. O pastor oficiante foi provavelmente o reverendo Daniel Schagen.

Aliás, ao que contam alguns historiadores, a raiva lusitana desse batismo calvinista teria sido maior do que a da “traição política”.

Calabar não foi qualquer um, muito menos traidor. Como poderia sê-lo se, na época, não existia a nação Brasil? Pode ter traído Portugal, mas Portugal é outro “CNPJ”. Além do mais, Pedro Souto Maior diz, por exemplo, que o Frei Manoel do Salvador já falava que Calabar era inteligente... “até aprendeu holandês”.

Aliás, na sua romanceada sobre a vida do Calabar, João Felício dos Santos revela que, enquanto os lusitanos levaram séculos, com dois anos de ocupação, os holandesas já estavam criando escolas em Recife. E que isso foi uma das justificativas dele para mudar de lado: “Cresci analfabeto, mas vi uma filha muito cedo já na escola”.

Esse mameluco é tão cheio de história que, se a gente não parar, acaba esquecendo os holandeses, mesmo sabendo-se que não nos referimos a quaisquer holandeses, mas ao que primeiro governou a Paraíba. E isso num tempo em que, refinado na Holanda, nosso açúcar já adoçava quase que a Europa inteira.

Saúde e higiene na capitania

Antes mesmo do relatório sobre os aspectos naturais e as condições econômicas em que o governador encontrou a Paraíba, a publicação do Grupo de Pesquisa do Iphaep abordará as ações do médico e do administrador Carpentier, a começar por campanhas de prevenção a doenças que ele chegou a adotar na região.

Com isso, melhorou as condições de higiene na cidade e, além das suas iniciativas na área de Saúde, foi fundamental na consolidação da presença holandesa num território onde a resistência portuguesa era pesada. Ele buscou estabelecer um diálogo com os líderes locais, destacadamente com o investidor Duarte Gomes da Silveira, ao mesmo tempo em que manteve uma postura firme contra as revoltas que emergiam, garantindo assim as condições de pacificação.

A gestão de Carpentier também foi marcada por esforços na promoção da agricultura e no comércio, áreas que eram vitais para a economia da província. Como a Paraíba oferecia terreno muito fértil, ele incentivou a produção de mandioca, que foi muito importante para a alimentação da população local e de outras partes do Brasil-holandês, fazendo o mesmo com o açúcar, já que o produto tinha muito valor de exportação para o mercado europeu.

Também diversificou as culturas locais, atraindo investidores e ajudando a estruturar um mercado que beneficiasse tanto os holandeses quanto os habitantes de um modo geral. Sobretudo, da parte dos potiguaras, que eram avessos aos métodos de escravização e de maus-tratos dos portugueses, obteve apoio quase que total, embora o seu governo não tenha sido totalmente isento de críticas. A presença holandesa gerou ressentimentos entre certos segmentos da população e, por isso, teve de lidar com a pressão constante de insurgentes.

Mesmo com pouco mais de 30 anos, a habilidade diplomática de Carpentier foi testada em várias ocasiões. Assim sendo, ele teve que navegar num mar de tensões para manter a ordem e a produtividade. Mesmo ocupado demais com a parte administrativa, aproveitou o período de estada na Paraíba para escrever seu relatório (o Rapport van de Capitania Paraíba), documento que foi publicado apenas em 1644, quase 10 depois de ser elaborado.

Juízes e câmaras municipais

Para além do período como governador, a publicação do Grupo do Iphaep também irá resgatar e documentar o trabalho prestado por Servaes Carpentier quando atuava como secretário do alto e secreto conselho do governo de Maurício de Nassau. Nesse período, elaborou as “Instruções Gerais para Escabinos e Escoltetos do Brasil”, que visavam regulamentar o funcionamento das câmaras municipais e dos juízes locais.

Embora não tenham tido a mesma notoriedade do seu relatório, essas instruções demonstram o envolvimento de Carpentier na organização administrativa dos neerlandeses. Participou ainda de expedições militares e administrativas, e sua atuação é mencionada em diversas correspondências e documentos da Companhia das Índias Ocidentais.

Não há registros de outras obras que tenham sido preservadas ou publicadas com destaque. Mas com base no que pôde ser documentado, não há como deixar de reconhecer que foi mesmo uma das figuras mais importantes da ocupação holandesa. E isso não apenas como médico — cujo trabalho desenvolvia auxiliado por um irmão que era enfermeiro —, mas também como líder que, em meio a um cenário de guerras e incertezas, buscou promover saúde e desenvolvimento.

Servaes Carpentier teve uma vida marcada pelo desempenho de atividades bem diversificadas, mas numa delas foi muito frágil e despreparado. Como dono dos Engenhos Três Paus e Tracunhaém de Cima (ambos em Goiana, Pernambuco), foi um fracasso, muito diferente do seu estimado compadre do Porto Calvo.

É, porque, nessa atividade, terminou contraindo e acumulando dívidas as quais acabou sem condições de pagar. Até mesmo por isso, viu-se cercado de preocupações e problemas de doença, falecendo, no Recife, com apenas 46 anos de idade.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de maio de 2025.