Neste ano, não teve brincadeira de boi no São João de Taperoá. Não tomaram as ruas da cidade a música e a dança encenada do teatro popular. É também sem grandes festas que amanhã, 30 de junho, celebra-se o Dia Nacional do Bumba Meu Boi, manifestação popular que, desde 2019, é considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Mas, há 62 anos, quem permanece levando essa tradição às ruas de Taperoá é Antônio Souza Salviano, mais conhecido como Antônio do Boi. Na mítica cidade dos personagens de Ariano Suassuna, ele é figura conhecida por todos como o último mestre vivo de sua arte na Paraíba. Aos sábados de Carnaval, todos admiram sua apresentação. “Não estou brincando agora, no São João, porque eu não fui chamado. O povo da prefeitura não me chamou neste ano, mas, quando fazem o chamado, eu estou presente”, conta mestre Antônio, de 84 anos.
O Bumba Meu Boi é uma das manifestações mais antigas da cultura popular brasileira. Surgiu durante o período colonial, a partir da fusão de elementos das culturas indígena, africana e europeia, especialmente portuguesa. A brincadeira atravessou séculos, mas, hoje, tenta sobreviver ao apagamento de suas práticas. Esse apagamento estaria realmente acontecendo?
“Acredito que o Bumba Meu Boi não foi apagado, mas incorporado a outros momentos festivos, como a Folia de Reis, como ocorre em Serra da Raiz, com mestre Ivanildo, por exemplo. Na periferia de Campina Grande, ele ganhou força mesmo como Boi de Carnaval, e isso também ocorre em Itabaiana”, aponta a doutora em Antropologia e pesquisadora da área, Érika Catarina.
Com forte presença no Nordeste, especialmente no Maranhão, o Bumba Meu Boi se desdobrou em diferentes sotaques, estilos e variações regionais. Desdobrou-se ainda em uma diversidade de nomes dada à brincadeira: Boi-Bumbá, Boi de Reis, Boi Pintadinho ou Boi Surubim. Essas variações envolvem também diferenças nas músicas, nas danças, nos trajes, nos instrumentos e na dramaturgia.
Em algumas regiões, o boi é festivo e colorido; em outras, pode ter um tom mais religioso ou cômico. “Nenhuma manifestação popular é isolada. Ela está sempre sendo influenciada pelo contexto social no qual está inserido. E é por esses rearranjos que o Bumba Meu Boi na Paraíba se distancia em narrativa e simbolismo do Bumba Meu Boi do Maranhão e do Piauí. Contudo, ele ainda perpassa as festas do São João e do Carnaval, que são as grandes festas populares do país”, acrescenta a especialista.
De forma geral, a narrativa central da brincadeira gira em torno de um boi muito estimado por seu dono, cuja morte é causada por um casal de personagens populares. Pai Francisco, vaqueiro da fazenda, mata o animal para atender ao desejo de sua esposa, Catirina, que, grávida, insiste em seu desejo de comer a língua do boi.
A trama desenrola-se a partir desse ato, envolvendo lamentos, julgamento, penitência e, por fim, a ressurreição do boi com a ajuda de curandeiros ou figuras sagradas, num desfecho marcado pela celebração coletiva.
“Embora pareçam distintas, essas manifestações alimentaram-se, em um dado momento histórico e simbólico, da narrativa do Boi-Bumbá, que é celebração e festejo das classes trabalhadoras que outrora eram mais encorpadas no campo, na agricultura e na pecuária. Ao migrarem para as pequenas vilas, carregaram os modos de socialização aprendidos na lida rural e no imaginário do brinquedo popular em torno do ‘boi’, que leva carga e pessoas, lavra a terra, que reproduz e cria rebanho, que, por sua vez, alimenta e é peça de troca e negócio”, detalha a antropóloga.
- No alto dos seus 84 anos, mestre Antônio passa a integrar o Registro no Livro dos Mestres e Mestras das Artes (Rema), a Lei Canhoto da Paraíba
É justamente na organização desse folguedo secular que o mestre Antônio atua. “Minha função é topar o boi e cumprimentar o povo. Andar na rua e fazer a apresentação, respeitando, considerando e com atenção”, descreve mestre Antônio. Uma descrição de responsabilidade que a antropóloga acrescenta com outro olhar da mesma atribuição. “A função do mestre na brincadeira do Boi-Bumbá é o da permanência, o da tradição. E a tradição, entendo aqui, não como antagonista da modernidade, mas como retórica de identidade”.
Para se tornar mestre, seu Antônio também precisou receber das mãos de um outro mestre, Raul Gouveia, a sua herança para seguir com a tradição do boi em Taperoá. Quando não tinha mais condições de saúde e se viu impedido de continuar com o festejo, ele pediu para seu Antônio dar continuidade à brincadeira, que, desde cedo, já fazia brilhar de forma especial os olhos claros do homem negro e corpo franzino.
“Quando Raul Gouveia adoeceu, ele me chamou para passar a brincadeira para mim. Tomei conta, até hoje. Peguei a prática e segui para frente. Eu tomei conta do boi com maior prazer e alegria. Tenho o maior gosto de brincar com ele. Eu vivia trabalhando para arrumar mantença, eu brincava com o boi e trabalhava, brincava com o boi e trabalhava”, relembra o mestre. Para chegar até as suas mãos, o boi precisou dançar e rodopiar muito pelo tempo.
É que a origem da brincadeira popular do Bumba Meu Boi na Paraíba remonta ao tempo do Brasil colonial. “Basta notar que a exploração do Sertão foi construída pelas patas dos ruminantes, nesse caso, das boiadas. A conhecida ‘sociedade do couro’ se estabeleceu no interior paraibano, moldando as relações sociais de tal forma que foi capaz de costurar a brincadeira popular do Bumba Meu Boi, do Boi de Reis e da figura do Boi do Carnaval, que resistem até hoje”, remonta Érika Catarina.
Exaltar a resistência de um povo nas suas práticas culturais é justo, mas é também penoso e tem a cara da sanfona que mestre Antônio usava para as apresentações, que está há muito tempo encostada. “A minha sanfona, eu tenho ela, mas só vou tocar nela quando mandar endireitar, porque está desmantelada. Já faz tempo que está assim”, lamenta.
Como forma de salvaguardar o folguedo, a Secretaria de Estado da Cultura na Paraíba (Secult-PB), da qual a antropóloga Érika Catarina é gerente-executiva de Articulação Cultural, anunciou que deve realizar em breve um censo da cultura para mapear as manifestações culturais populares.
Ser considerado o último mestre do Bumba Meu Boi pode ser honroso para quem dedicou mais de seis décadas de sua vida a essa expressão muito genuína de sua identidade. Mas ela também vem com um peso e um risco embutido nisso, que parece ainda não assustar o mestre Antônio. “Isso não me preocupa. Eu brinco com prazer. Se Deus quiser, quando eu não puder brincar mais, passo para um neto, que já brinca mais eu”, contenta-se o artista.
Na última sexta-feira (27), seu Antônio do Boi foi reconhecido como o mais novo Mestre da Cultura Popular da Paraíba. A honraria foi concedida durante reunião do Conselho Estadual de Política Cultural, realizada em Serra Grande, no Sertão.
Com isso, Antônio Souza Salviano passa a integrar o Registro no Livro dos Mestres e Mestras das Artes (Rema), a Lei Canhoto da Paraíba — título vitalício que, além do reconhecimento simbólico, garante a ele o recebimento de dois salários mínimos mensais, em valorização às suas contribuições à cultura popular ao longo da vida.
Na história do boi, ele nunca morre, mesmo que arranquem com violência a sua língua. Mas, para que ele continue brincando em todo São João e em todo Carnaval, é preciso que haja festa, música e povo nas ruas. Só assim o boi, que nunca morre, continuará ressuscitando.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de junho de 2025.