Se o dito popular de que “o conhecimento vale ouro” traduz a ideia de que o saber está atrelado ao poder, a decolonialidade trabalha essa relação ampliando a perspectiva do “conhecer”, até então monopolizada por povos que se impuseram ao longo do processo de colonização ocidental. Mais do que uma corrente teórica, o pensamento decolonial representa uma nova forma de olhar os saberes historicamente marginalizados.
No Nordeste brasileiro, um exemplo disso são as práticas das rezadeiras, que provêm das tradições afro-indígenas e são bastante consideradas na cultura sertaneja. Unguentos e remédios com ervas, assim como os saberes ancestrais em torno do tempo, são formas de conhecimento que organizam aspectos da vida de muitas comunidades. Na Paraíba, os chamados “profetas da chuva” encontram-se anualmente no campus de Catolé do Rocha, da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), para elaborar previsões sobre o clima na região. “São homens e mulheres que compreendem as dinâmicas do tempo a partir de uma observação apurada das condições da natureza. Alguns vão analisar, por exemplo, o nascimento de determinadas plantas ou a posição da casa do passarinho João de Barro. A decolonialidade vem exatamente para mostrar a importância de se valorizar esse tipo de conhecimento. Muitas vezes esses saberes são apropriados pela ciência acadêmica, que constrói uma outra narrativa sobre eles e os organiza de acordo com a sua linguagem. Mas eles já estavam lá, com toda a sua complexidade e sofisticação”, explica o historiador Lucas Medeiros.
Natural também de Catolé do Rocha, Lucas fez os primeiros contatos com os estudos decoloniais no curso de graduação. Hoje, desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), investigando as relações entre gênero, sexualidade e religiões afro-ameríndias e afro--brasileiras na perspectiva decolonial. O termo ‘“perspectiva” é justamente o que o pesquisador mais enfatiza ao caracterizar a decolonialidade. Para compreendê-la, no entanto, ele ressalta que é preciso esclarecer outros termos como “colonialismo” e “colonialidade”.
“O colonialismo é um processo histórico marcado pela dependência de antigas colônias em relação a antigas potências hegemônicas, as metrópoles, localizadas no que a gente chama de ‘Europa moderna’. Quando ocorre a independência dos países colonizados, uma infinidade de questões de ordem política, econômica e social permanece. Ou seja, a dependência vai permanecer em relação à maneira de produzir o conhecimento, às formas de organização política e em vários outros sentidos. Por isso, a gente pode dizer que a colonialidade é a continuação do colonialismo histórico”.
Uma das críticas que mostra a presença da colonialidade está no próprio meio acadêmico, inclusive nas ciências humanas e sociais, que privilegia o estudo de correntes europeias ou norte-americanas de pensamento, em detrimento de autores latino-americanos. Um modelo que, segundo Lucas Medeiros, reforça a ideia de que quem pensa é o europeu, deixando à margem formas de pensamento pouco discutidas.
Com base nisso, o pesquisador reforça que a decolonialidade surge como denúncia sobre o conhecimento ocidental hegemônico como única forma de conhecimento válida, chamando atenção para como ele tem sido reproduzido nos países historicamente subalternizados pelo modo como, ainda hoje, organizam-se.
“Não se trata de negar o conhecimento europeu, conhecimento científico, clássico, canônico, mas de apontar a existência de outras formas de conhecimento que são tão importantes quanto. E aí a gente pode pensar, por exemplo, nos saberes das comunidades tradicionais, dos grupos religiosos que foram historicamente desqualificados. Por isso, para além de uma perspectiva acadêmica, a decolonialidade é também uma proposta política de valorização dos conhecimentos historicamente marginalizados pelas formas convencionais e hegemônicas”, completa o pesquisador.
A ênfase em dizer que não se trata de negar o conhecimento produzido até então pela humanidade tem razão de ser. Medeiros alerta para o risco de confundir a decolonialidade com posições extremas, como o anticientificismo e o negacionismo, que tentam criar um novo conhecimento dentro dos parâmetros ocidentais pela via da negação.
“Toda essa discussão sobre o terraplanismo ou a crítica à utilização das vacinas são formas de produção de conhecimento que negam o conhecimento hegemônico, mas dentro das mesmas estruturas. Ela aparece como uma alternativa extremamente perigosa. E aí não se trata de saberes de grupos que foram subalternizados, e sim de uma crítica à ciência sem embasamento”, compara.
Os estudos de decolonialidade começaram a se difundir a partir da década de 1990, com a organização de grupos nos continentes africano, asiático e na América Latina. Hoje, o termo tem ganhado destaque em diferentes cenários sociais e políticos, a ponto de ser considerado até modismo. Lucas Medeiros faz questão de alertar como essa tendência pode vir acompanhada do desconhecimento e reforçar visões contrárias.
“É um pouco cool falar em decolonialidade. É bacana. Então as pessoas fazem disso meio que um modismo também. E muitas delas, de forma equivocada, vão pensar a decolonialidade como uma tentativa de apagamento do conhecimento europeu, quando na verdade não se trata disso. É muito mais uma tentativa de reformulação, do que propriamente negá-los”, completa.
A decolonialidade nasceu no campo das Ciências Sociais e Humanas, onde tem sido mais mobilizada para reconfigurar paradigmas. No caso da História, por exemplo, uma das críticas feitas é em relação à compreensão histórica linear e progressista, que naturaliza hierarquias, legitima violências e invisibiliza formas de narrar o mundo. Outras áreas aparentemente mais fechadas à autocrítica, como as Ciências Exatas, também têm ensaiado reformulações, como é o caso da Matemática, que vem considerando a perspectiva do Egito Antigo em vez de somente as influências gregas. O caminho para a valorização de outros saberes sempre será desafiador e exigente, mas nunca impossível. Os primeiros passos já foram dados.
FliParaíba
Vez por outra, o tema da decolonialidade também é abordado ou mencionado nos eventos literários. Um deles, o FliParaíba, começa gratuitamente a sua segunda edição na próxima quinta-feira (27) e segue por mais dois dias, no Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa, reunindo artistas e pensadores do Brasil, África e Portugal.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de novembro de 2025.