Notícias

Patrimônio

Resgate das memórias audiovisuais

publicado: 27/10/2025 09h19, última modificação: 27/10/2025 09h19
Universidade Estadual da Paraíba procura apoio e parcerias para a preservação do acervo de Machado Bittencourt
2025.10.23 Acervo Machado Bittencourt © Julio Cezar Peres (11).JPG

Sob guarda da UEPB, coleção de Bittencourt é composta por cerca de 30 rolos em películas (super-8, 35 mm e 16 mm), um antigo projetor, fotografias, livros, revistas e maquinários | Fotos: Julio Cezar Peres

por Marcos Carvalho*

Os arquivos audiovisuais contam parte da história e da cultura contemporâneas por meio de uma linguagem, que tem se tornado cada vez mais popular com a ampliação do acesso à internet e às redes sociais. Para estimular a salvaguarda e a preservação dessa memória coletiva, que também é fonte de conhecimento, a Unesco adotou o dia 27 de outubro como Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual. Na Paraíba, a data ajuda a reforçar a necessidade de medidas urgentes para preservar acervos, como o do cineasta Machado Bittencourt, considerado um dos precursores do cinema em Campina Grande.

O acervo de Bittencourt, composto por cerca 30 rolos em películas (super-8, 35 mm e 16 mm), um antigo projetor, fotografias, livros, revistas e maquinários, foi repassado à Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) pela viúva do cineasta, Célia Bittencourt, que mantém a propriedade do material. “A gente detém a guarda, mas sem saber exatamente o conteúdo e a condição de visibilidade desse material. Para isso, é preciso aparelhos para telecinagem, fazendo a projeção, que será gravada e, então, digitalizada”, explica o jornalista Hipólito Lucena, coordenador de Comunicação da UEPB, setor responsável pelos arquivos.

Por isso, ainda não existe uma catalogação mais precisa do material. Alguns dos poucos rolos do acervo que foram digitalizados devem-se a iniciativas de estudiosos e produtores, que buscaram o material como fonte de pesquisa. Lucena conta que a preocupação inicial quando o material foi transferido era fazer sua higienização, para disponibilizá-lo, mas alega que muitos itens já se encontravam em estado de conservação bastante comprometido. Aos poucos, os registros fotográficos têm sido digitalizadas. Os equipamentos como moviola, gravador de áudio e projetor, no entanto, precisam passar por uma criteriosa avaliação e reparos.

“O acervo está disponível quando alguém procura para fazer pesquisas ou uso, mediante agendamento. A gente sempre recebe alunos do Curso de Cinema da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). No ano passado, nós cedemos uns três rolos de filmes para um projeto de Fabiano Raposo, que discute, justamente, a necessidade da preservação dessa memória cinematográfica. Esse trabalho deu origem a um curta-metragem documental chamado Ninguém (Mais) Verá”, relata o jornalista.

Os projetos e ações para manter, preservar e tornar visível esse patrimônio têm procurado apoio e parcerias junto a outras instituições e fundações, inclusive por meio de editais de leis de incentivo. Questões técnicas e jurídicas, como o fato do acervo não pertencer à universidade, acabam tornando-se, segundo Hipólito Lucena, um complicador para a aprovação de muitos dos projetos apresentados. O sonho de ver o material preservado, no entanto, não se desfaz.

“Estamos vivendo um momento de afirmação de uma rede paraibana de museus, e seria importante pensar num museu da imagem do som. É superimportante para não perdemos esses acervos videográficos e cinematográficos já feitos, que estão aí, isolados, e para que pudéssemos ter acesso a esse material de preservação da memória e da identidade do povo paraibano”, defende Hipólito Lucena, que está à frente de festivais audiovisuais como o Comunicurtas UEPB.

A preocupação com a conservação e restauro do acervo de Machado Bittencourt é compartilhada por Rômulo Azevedo, produtor, diretor de cinema e televisão e também professor do curso de Jornalismo da UEPB. Chamado para avaliar o material quando ainda estava armazenado numa das salas do Centro Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa, ele relata que, naquela época, mais de 10 anos atrás, muitos filmes já estavam se decompondo. Depois da transferência para Campina Grande, o docente avalia que muito pouco tem sido feito para garantir sua preservação e recuperação.

“O acervo de Machado é fundamental, porque trata das coisas do Nordeste, particularmente aqui da Paraíba. São muitos documentários, muitas imagens, por exemplo, sobre Frei Damião, nas passagens dele pela Paraíba. E tem ainda os cinejornais em 35mm, que eram exibidos, semanalmente, nos cinemas da Paraíba, tanto em Campina Grande como em João Pessoa, no fim da década de 1970 e princípio dos anos 1980. Foi ele quem fez o primeiro filme em cinemascope, que é aquele formato que usa a tela toda, em 1966. Um filme chamado A Feira, que é um docudrama — documentário misturado com drama”, ressalta o diretor.

O olhar do professor Rômulo Azevedo expande-se para a preservação de outros acervos de cinegrafistas do passado, como o de Odilon Felisberto da Silva, mais conhecido pelo nome dado à sua produtora de vídeos, Odicine, assim como de Zé Cacho, fotógrafo que filmava em 16mm os desfiles de 7 de Setembro e demais acontecimentos sociais da Rainha da Borborema. Como muitos familiares não possuem condições de manter os materiais, o destino acaba sendo incerto, com grande risco de que todos esses registros percam-se para sempre.

“Precisamos fazer uma operação de salvamento, porque se você deixar uma película dentro da lata por 10 anos, quando abrir o filme vai está todo deteriorado. É preciso recopiar, fazer remasterização e uma série de coisas que não foram feitas com esses arquivos. Vamos preservar, recuperar, restaurar esses acervos. Quem vai ganhar com isso é o estado da Paraíba, o Brasil e o mundo”, conclama Rômulo Azevedo, que sugere a união de esforços entre órgãos de Cultura estadual e municipal, assim como de membros do Poder Legislativo para, por meio de emendas parlamentares, agir rapidamente, enquanto é possível.

Sobre Bittencourt

Juremi Machado Bittencourt Pereira era piauiense, mas radicou-se na Paraíba quando tinha ainda 18 anos. Identificou-se com Campina Grande, seu povo e sua história, onde construiu laços afetivos e trabalhou como cineasta, fotógrafo, escritor, historiador, memorialista, jornalista e professor de cinema. Na cidade, trabalhou na sucursal do Correio da Paraíba e também na TV Borborema, ao mesmo tempo em que prestava serviços como cinegrafista freelancer, função que também exerceu em João Pessoa.

Bittencourt produziu cerca de 200 filmes, entre documentários, ficções, reportagens cinematográficas, comerciais e propagandas políticas. A improvisação era uma de suas marcas, filiando-se esteticamente ao pensamento glauberiano que forjou o movimento do Cinema Novo. Por ocasião das comemorações pelo quarto centenário da Paraíba, em 1985, produziu Parahyba, filme que recebeu vários prêmios. Foi também um dos fundadores da Fundação Nordestina de Cinema (Funcine), extinta no governo Collor juntamente com a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme).

No fotojornalismo, foi o responsável pelas primeiras imagens do Massacre das Ligas Camponesas em Sapé, durante a Ditadura Militar. Com sensibilidade artística, teve seus trabalhos fotográficos publicados em revistas como Foto-Arte, Modem Photography, Iris e Photo, dentre outras. Na imprensa, Bittencourt trabalhou para revistas como Veja e Manchete, e foi repórter fotográfico dos jornais paraibanos A União, O Norte, Jornal da Paraíba e O Momento. Machado Bittencourt morreu aos 56 anos, no dia 27 de abril de 1999.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de Outubro de 2025.