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“Cartas tupis”

Uma batalha epistolar indígena

publicado: 03/11/2025 09h19, última modificação: 03/11/2025 09h19
Pouco explorados pela historiografia tradicional, os primeiros escritos indígenas do Brasil são potiguaras e estão completando 380 anos
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Correspondências nos conflitos luso-holandeses pelo controle do Nordeste brasileiro são, até hoje, os únicos documentos conhecidos escritos em tupi antigo, por indígenas no Brasil colonial | Ilustração: Bruno Chiossi

por Ademilson José (Especial para A União)*

Há quem diga, inclusive no mundo da pesquisa acadêmica, que nos dois primeiros séculos de colonização (o 16 e o 17), os potiguaras não passavam de “um bando de índios em meio à Guerra do Açúcar”, nome que foi dado ao conflito travado durante várias décadas no Nordeste brasileiro, entre portugueses, espanhóis e holandeses.

Ledo engano. Além de se posicionarem politicamente e de manterem uma guerra direta, de 120 anos, com os portugueses, os potiguaras também fizeram história, inclusive, escrevendo. Tanto é assim que são deles os primeiros escritos indígenas do Brasil, as famosas “cartas tupis” que agitaram a Insurreição Pernambucana (1645–1654) e que, neste fim de semana, completam 380 anos.

Afinal de contas, a última e principal delas é datada de 31 de outubro de 1645 e foi escrita pelo paraibano Pedro Poti (aliado dos holandeses protestantes), respondendo a seis que havia recebido do primo Felipe Camarão, natural do Rio Grande do Norte e defensor da colonização católico--portuguesa.

Naquele momento histórico, é bem verdade que o pior de tudo foi os indígenas terem a sua cultura invadida e agredida por europeus (católicos e protestantes), que tentavam espalhar o cristianismo pelos quatro cantos do mundo. Mas, fato consumado, a história poderia ter sido contada de forma diferente, sem relegá-los à mera condição de “coitadinhos” e de vítimas da escravidão. Afinal de contas, eles também tiveram ações, algumas tão ou mais nobres do que a dos invasores europeus.

Uma dessas ações foi o conjunto de cartas que trocaram, uns tentando atrair os outros para o lado que defendiam e para a fé que professavam. Essas cartas são, até hoje, os únicos documentos conhecidos escritos em tupi antigo por indígenas no Brasil colonial. E se mesmo assim foram omitidas ou pouco exploradas pela historiografia tradicional, não tem outra explicação: ao invés de História do Brasil, o que (ainda) temos lido é mesmo a velha e caduca “História Portuguesa do Brasil”.

Felipe Camarão (educado e evangelizado pelos jesuítas portugueses) e Pedro Poti (educado na Holanda onde passou cinco anos) protagonizaram uma batalha de correspondência que, pela maneira que tratavam questões como liberdade, pátria e religião, demonstraram ter aprendido muito mais do que seus chefes invasores esperavam. Tudo começa, conforme o registro do historiador pernambucano Bruno Miranda, depois da famosa assembleia que 150 caciques potiguaras realizaram no dia 11 de abril de 1645, na Aldeia de Tapessirica, em Itamaracá, com aval do governo do Brasil-holandês.

Na ocasião, sob as lideranças de Carapeba (PE) e Paraupaba (RN), os potiguaras aprovaram o nome de Pedro Poti como “Regedor dos Índios do Brasil-holandês” e, como prova de um nível de politização inusitado para a época, um documento “exigindo o cumprimento de uma lei de Maurício de Nassau que punia os donos de engenhos que (ainda) escravizasse indígenas” e também “a criação de um governo paralelo, com vereadores e juízes indígenas”.

Indignado com o apoio dos holandeses a uma parte do seu povo, no dia 19 de agosto de 1645, com outros parentes católicos, Felipe Camarão escreveu a primeira das seis cartas dirigidas a Pedro Poti, acusando os holandeses de “hereges” e alertando os potiguaras de que, ficar do lado deles, seria “estar no fogo dos diabos”.

Vozes raras

Iniciada logo depois da saída de Nassau do Brasil (em 1644) e intensificada pela guerra cristã que os indígenas deflagraram, um ano depois, a insurreição se prolongaria então por nove anos, mais precisamente até 26 de janeiro de 1654, data em que, segundo o historiador Evaldo Cabral de Mello, em troca do correspondente a 63 toneladas de ouro recebidas de Portugal, os holandeses resolveram deixar o Nordeste brasileiro.

Alheios a essa negociata diplomática — e em meio aos conflitos protagonizados também por donos de engenho, que queriam calotear o pagamento dos empréstimos que haviam conseguido no período Nassau —, os potiguaras emergiram como vozes raras. Vozes que, apesar de omitidas, tiveram muita influência nas decisões dos próprios invasores europeus.

Pelas cartas de suas lideranças, os indígenas deixaram de ser coadjuvantes silenciosos e passaram a produzir discursos escritos. Discursos sobre os quais os liderados podiam até não ter o mesmo domínio de elaboração, mas que tinham seus argumentos entendidos, discutidos e espalhados pelas aldeias.

Apesar da indiferença da história oficial, as cartas tupis começaram a ser traduzidas pelo historiador Pedro Souto Maior, em 1913. Foram as primeiras tentativas de dar acesso a esses documentos históricos que se tornariam fundamentais para o estudo da língua tupi, da Insurreição Pernambucana e do período colonial.

Embora sua tradução apresente imprecisões para alguns estudiosos, ela serviu de base para traduções mais recentes, realizadas pelo professor Eduardo Navarro, da Universidade de São Paulo (USP). Em 2021, Navarro decifrou as cartas integralmente, revelando assim o ponto de vista dos “indígenas letrados” nos conflitos luso--holandeses pelo controle do Nordeste brasileiro.

Nas cartas de Felipe Camarão, a religião aparece como argumento e como justificativa fundamental. Mas, num dos momentos, ele recorre também à cultura original dos indígenas: “Nossas antigas terras, nossos velhos ritos... todos estão sob as leis dos insensatos holandeses, assim como seu corpo e sua alma também estão”.

Essas passagens mostram como o elemento religioso (cristianismo católico versus protestantismo calvinista) é misturado com laços de sangue (parentesco), território e tradição indígena. Camarão apela não apenas à fé, mas também à ancestralidade indígena: “Nosso modo de vida de antigamente”, lembra ele, num trecho de outra correspondência que ditou para um parente escrever.

A única carta-resposta de Pedro Poti não foi preservada integralmente em tupi (é completa somente em holandês), e nela ele pede que Camarão pare de lhe escrever e de tentar lhe convencer, e contesta a aliança do primo com os portugueses que trata por “perversos”. Outro argumento usado por Poti é o episódio ocorrido em 1o de agosto de 1625, quando tropas de Olinda/Itamaracá não excluíram nem mesmo crianças e idosos do que ficou conhecido como Massacre da Baía da Traição.

Vê-se assim que, apesar de a religião preponderar, as cartas voltavam-se também para a memória de dominação, lealdade e violência. Nunca receberam a atenção que mereciam na história do período colonial, mas trechos dessas cartas podem ser encontradas em livros de alguns dos principais pesquisadores do Brasil-holandês, entre eles, Pedro Souto Maior e José Antônio Gonsalves de Mello. Na íntegra, analisadas, comentadas e em espaços on-line, também por meio de artigos acadêmicos do próprio tradutor Eduardo Navarro (USP) e da professora Regina de Carvalho Ribeiro da Costa (UFF).

É só um retrato de como a história é preconceituosa. Nossos indígenas também fizeram. Até escreveram. Mas só as dos brancos nos foram contadas.

Através deste link, todas as cartas — analisadas e comentadas — podem ser acessadas

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 2 de novembro de 2025.