No ano passado, ela participou do Festival de Música da Paraíba com a canção “Negro poder”, em parceria com Ana Regina Limeira. Não quis cantar, apenas compor. Ficou em segundo lugar no evento e foi quando entendeu que estava pronta para uma nova fase. Após mais de duas décadas de dedicação à música nordestina na condição de intérprete, a cantora e compositora Sandra Belê avança no mundo com Sussuarana, seu primeiro trabalho inteiramente autoral.
O EP chega ao mercado fonográfico digital como marco de uma nova etapa na carreira da artista paraibana, que completa neste ano 25 anos de estrada. Realizado com recursos da Lei Paulo Gustavo na Paraíba, o compacto terá lançamento nacional na próxima quinta-feira (24), no palco da Prata da Casa, no Sesc Pompeia, em São Paulo, e chega às plataformas digitais no dia 22 de agosto.
“Estou bem feliz com a gravação e o lançamento desse primeiro trabalho autoral”, diz ela. “Primeiro a gente passa por vários estágios, né? O primeiro é não acreditar naquela canção e depois vem a coragem de colocá-la no mundo. Quando a gente se fortalece e resolve colocar no mundo é um passo bem grande”.
Sandra atribui a demora em lançar trabalho de sua lavra ao alto nível de exigência e critério que perpassa seu processo criativo — “sempre escolho muito bem as canções que canto”, atesta. Nesse meio tempo, a artista já fazia inserções (embora tímidas) de composições próprias desde a sua primeira produção Nordeste Valente (2005), ocasião na qual gravou as faixas “Cantos do rei” (em parceria com Pedro Santana) e “Secas Campinas”, um poema escrito ainda na adolescência e musicado por ela para aquele disco.
Em Sussuarana, a fera compositora enfim encarna e eviscera contornos de vigoroso protagonismo. Com direção musical de Helinho Medeiros e produção de Sylvana Toscano, o EP foi todo gravado na Paraíba, no estúdio Peixe Boi, com a participação de talentos locais.
“Foi um trabalho bonito demais, todos os músicos muito inteirados, participando, opinando, dando a sua contribuição no trabalho; foi bonito. Pude fazer tudo aqui na Paraíba graças à Lei Paulo Gustavo. Isso foi fundamental”, ressalta.
Ousando compor
O álbum possui quatro faixas, todas baseadas em experiências pessoais da cantora. “O EP é todo eu. São minhas vivências”, resume.
A faixa-título do trabalho, disponibilizada na última semana nas plataformas, conta a saga de uma artista que sai de sua cidade natal à caça de espaço na cidade grande.
“‘Sussuarana’ é uma alusão à vida de artista. É a minha saga, de estar em Zabelê, achar que lá é pequeno demais para o meu sonho, sair de lá e me encontrar na cidade grande, sempre lutando por espaços e fazendo mil coisas. Mas narra também sobre chegar nessa selva de pedra e ser acompanhada por pessoas que se juntam para fazer a coisa acontecer, como é o caso da produção”, detalha.
“De longe” é um xote composto em São Paulo, onde Sandra viveu por um período, retratando momentos de observação e adaptação à cidade. Aqui Sandra divide o canto com Nathalia Bellar, com arranjos de Helinho Medeiros e guitarra de Léo Meira.
Já “Coco Maria”, um feat com Val Donato, é resultado do aprendizado com mestres da cultura popular, como Vó Mera, Caiana dos Crioulos e Biliu de Campina. “É um coco trava-língua, uma reverência ao que aprendi com os mestres e mestras, narrando a força feminina na arte”, aponta. Cassi Cobra é quem assina a percussão da canção.
A quarta e última faixa, “Olhos marrons” é uma canção romântica. “Ela narra o meu amor, uma paixão grande que estou vivendo, um amor entre duas mulheres”, desvenda Sandra, que traz para a colaboração a cantora Myra Maya.
A escolha das vozes convidadas também seguiu critérios afetivos e artísticos. “Quando penso nas participações, eu queria gravar com grandes mulheres paraibanas. Com todas eu já tinha contato, já fiz algum trabalho ou troquei figurinhas. Para cada uma eu dizia: ‘nossa, acertei’”, conta.
De acordo com Sandra, Myra Maya foi nome eleito pela tônica do romantismo, ao passo que Nathalia Bellar atendeu ao critério de uma pegada mais blues própria a “De longe”. Já Val Donato foi escolhida por ter afinidade com o gênero do coco: “A gente fazia um show juntas, que era um coco rock and roll. Joguei, elas toparam e super deu certo; as músicas são as caras delas”, comenta.
O lançamento nacional em São Paulo marca o início de uma nova fase da artista. “A pretensão é essa: alcançar mais palcos. Aqui na Paraíba, eu me sinto super reconhecida, mas quero me colocar no cenário artístico nacional como compositora. Intérprete eu já sou, está tudo certo; quero mostrar meu lado compositora”, confessa.
O EP é também um registro de fases distintas da vida de Sandra. “A gente consegue dar uma sequência mais lógica, mas não foi pensado de forma cronológica. ‘Sussuarana’ fala da saída de Zabelê, depois narra quando vou pra São Paulo, depois sobre a minha paixão e depois o coco, que é sobre mim, sobre o que eu sei fazer, a minha ode aos mestres. São fases da vida”, acrescenta.
Fera solta
Durante os festejos juninos deste ano, Sandra apresentou o show Nordestina, voltado ao público do interior paraibano, em diversas cidades. “Pensei muito no público do interior, que conhece meu trabalho. Então montei um show que a galera canta junto e se identifica. Foi muito legal. Claro que ano que vem queremos mais cidades. Quanto mais pessoas conhecendo nosso trabalho, melhor”.
Em João Pessoa, uma nova apresentação de Sandra Belê já vem sendo preparada. Ainda sem data definida e batizada de Sussuarana – Na Trilha Delas, o show trará o repertório do EP em diálogo com canções compostas por mulheres paraibanas.
Rompendo muros com seu canto livre e cintilante, e assentado na cultura popular nordestina, nas trovas e nos cocos, nas histórias de amor e nas mudanças naturais ao ciclo da vida, Sussuarana surge como um retrato íntimo da trajetória de Sandra Belê, que ora se pretende fera solta para além do chão da sua gente.
“É um projeto que nasce para me colocar no cenário artístico como compositora. Agora, a gente precisa ganhar os palcos nacionais. Tomara que Sussuarana faça isso para a gente”, conclui.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de julho de 2025.