Notícias

memória

Bernardet essencial

publicado: 15/07/2025 09h39, última modificação: 15/07/2025 09h39
Um dos principais teóricos da sétima arte no Brasil morreu no sábado, deixando obra inestimável
Jean Claude Bernardet - foto Cecilia Bastos.jpg

Bernardet acompanhou de perto quase 70 anos de cinema brasileiro | Foto: Cecilia Bastos/Divulgação

por Esmejoano Lincol*

 “Que deve dizer o cinema brasileiro?”. A frase do cineasta Linduarte Noronha, na exibição do documentário Aruanda durante a Convenção da Crítica Cinematográfica, em São Paulo, em 1960, impactou o então jovem analista Jean-Claude Bernardet, belga que seria naturalizado brasileiro pouco tempo depois. Testemunha ocular de boa parte da produção cinematográfica dom país em quase sete décadas, ele registrou esse desagravo no livro Brasil em Tempo de Cinema (2007). Apesar de seu falecimento, sábado (12), Bernardet deixa um legado insuperável sobre seu objeto de estudo.

Nascido na cidade de Charleroi, a sudoeste da Bélgica, rumou para a França ainda criança com os pais, antes de desembarcar no Brasil, aos 13 anos de idade. Em conversa com a revista Pesquisa, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), revelou que demorou a “aterrisar” na realidade brasileira, algo que só conseguiu a partir de seu ingresso em curso de artes gráficas no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).

Como capista de livros e, mais tarde, funcionário de livraria, aproximou-se do cinema por meio de um cineclube vizinho ao local de trabalho. Foi conquistado pela sétima arte e iniciou, então, os primeiros exercícios de crítica durante as projeções.

Na década de 1950, estreitou laços com a Cinemateca Brasileira, por meio de um de seus fundadores: Paulo Emílio Sales Gomes, que o convidou a escrever no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Num país pré-ditadura, organizou festivais de filmes franceses e soviéticos.

Mesmo sem ter concluído o ensino médio, tornou-se professor de cinema na Universidade de Brasília (UnB), ajudando a consolidar o primeiro curso da área do Brasil, no início dos anos 1960. Entusiasta do Cinema Novo, Bernardet viu florescer seus expoentes, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e o próprio Linduarte Noronha – vindo das “lonjuras da Paraíba”, segundo suas palavras em Brasil em Tempo de Cinema. O relato de Aruanda, que retrata uma família de quilombolas da Serra do Talhado, no município de Santa Luzia, foi confrontado pelos presentes naquela reunião de críticos, mas justificado pelo diretor, que foi corroborado pelo analista belga: Como fazer cinema sem equipamento, sem dinheiro, sem circuito de exibição? Tais eram as perguntas que surgiam de norte a sul do país”.

Notório saber

As aproximações com o Cinema Novo e as investidas na constituição de cursos de cinema no Brasil tornaram Bernardet visado. Quando tentava retomar a carreira como docente na Universidade de São Paulo (USP), foi promulgado o Ato Institucional nº 5, em 1968. Teve seu emprego cassado junto de outros 24 colegas.

Para garantir o sustento, afiliou-se ao Goethe, instituto privado que impetrou resistência ao regime com cursos livres de artes. Viajou pelo Nordeste organizando cineclubes e compartilhando técnicas de “autocensura”, que permitiam aos alunos fazerem sessões públicas com debates, sem chamar a atenção do governo ditatorial. 

Bernardet, em filmagens de entrevista para o documentário “O Homem por Trás do Cinema Novo”, de Lúcio Vilar | Foto: Andréa Vilar/Divulgação

Com a Lei da Anistia, em 1979, voltou à USP com o título de doutor por notório saber. Permaneceu no corpo docente da Escola de Artes e Comunicação (Eca) até 2004, quando se aposentou. Acumulou contribuições em vários livros sobre cinema. Destacam-se o basilar O que É Cinema (1981) pertencente à coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, e Cinema Brasileiro – Proposta para uma História (2009), pela Companhia das Letras. Wet Mácula (2023), um relato mais pessoal, foi seu último lançamento.

A paixão pelo cinema impulsionou Bernardet para atuar também como realizador, roteirista e ator, mas esparsamente, a partir de O Caso dos Irmãos Naves (1967), dividindo a adaptação desse caso real com o diretor Luiz Sérgio Person. Escreveria, ainda, Um Céu de Estrelas (1996) e Hoje (2011), ambos de Tata Amaral.

No Fest Aruanda de 2019, em João Pessoa, foi premiado por sua atuação no curta-metragem Nuvem Negra, de Natália Tavares e Flávio Andrade. E na edição mais recente, competiu com A Última Valsa, documentário poético concebido em parceria com Fábio Rogério.

Teve a coragem de compartilhar sua condição como soropositivo e a vivência como idoso nos livros A Doença, uma Experiência (1996) e O Corpo Crítico (2021), respectivamente. No segundo título, deu detalhes sobre a enfermidade que foi causa de sua morte no último final de semana: “Quando tornei público que estava com câncer de próstata e que interrompia o tratamento, muita gente se comoveu pensando que eu desistia. A ficção da entrega à morte, esses amigos a vivenciaram, mas não a inventaram. Ela é gerada por nossa sociedade e tem algumas premissas. Viver o maior tempo possível virou dogma”.

Sem concessões

A cineasta Vânia Perazzo recorda as visitas de Bernardet ao município de Areia, no Brejo, participando de festivais de arte, nos anos 1970: “Ele me surpreendeu com a idéia de que todos os filmes estrangeiros deveriam ser dublados no cinema, para dar mais oportunidades a artistas brasileiros. Depois, me deixou feliz quando disse que meu filme O que os Olhos Não Veem foi o melhor no Aruanda em 2019”. Gian Orsini, programador do Cine Bangüê, na capital, assevera que ele é uma “pedra fundamental” para a sétima arte brasileira: “Ajudou a gente a pensar o cinema brasileiro como é hoje. E teve contribuição como ator com Kiko Goifman e o paraibano Taciano Valério [no longa Pingo d’Água, de 2014]”. 

Bertrand Lira, documentarista, assinala o trabalho de Bernardet como teórico. Recorda a crítica positiva que recebeu por seu filme O Seu Amor de Volta (Mesmo que Ele Não Queira): “Incluí a frase dele no cartaz: ‘Ele cutuca nossos demônios íntimos com afeto, sem perder a ironia’”. João de Lima, presidente da Academia Paraibana de Cinema (APC), rememora sua experiência como pós-graduado na ECA: “Numa breve carona até o início da Avenida Paulista, me perguntava sobre os críticos de João Pessoa com quem conviveu na estréia de Aruanda”.

Fernando Trevas, pesquisador e ex-aluno de Bernardet na USP, destaca o seu “espírito ligado e atento”. “Ele sempre situava a questão estética do cinema, mas também a questão política, no seu sentido amplo. Ele nunca separava uma coisa da outra”.

Por fim, Lúcio Vilar, curador do Fest Aruanda, assevera a capacidade ensaística do crítico: “Para se ter uma ideia, ele chegou a criticar um filme (Através da Janela, da diretora Tata Amaral) do qual foi roteirista. Ou seja, por aí se percebia o quanto o ato de escrever era sagrado e inegociável, sem concessões para ele”.  

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de julho de 2025.