Na sala silenciosa onde repousavam caixas, manuscritos e volumes encadernados, Mary Ellen Cândido, filha do jornalista e escritor Gemy Cândido (1943–2023), encontrou não apenas papéis avulsos, mas um novo pai. Acumulador por natureza, Gemy guardava de objetos pessoais a escritos que surpreenderam todos os seus familiares. Parte dessa produção inédita chega ao público em três livros de poesia (Dunas de Cristal e Outros Poemas, Caminhos de Pedra e Diluída Forma), a serem lançados hoje, às 17h30, na Livraria do Luiz (MAG Shopping), em Manaíra.
“Na morte dele, em 2023, nós não tínhamos noção de quem era ele, o que ele representava para o estado, para a história, para a literatura”, relata Mary Ellen, responsável pela organização do acervo, juntamente com seu irmão, Gemierson Cândido. “A gente descobriu muitos escritos que nem imaginava e acabamos descobrindo um novo pai”, brinca.
Conhecido no meio intelectual como crítico literário, Gemy Cândido trabalhou em diversos jornais do estado, a exemplo de A União, e aposentou-se cedo graças ao tempo de estudo na escola agrícola, que aproveitava para a contagem de serviço. A partir daí, passou a viver recluso, dedicando-se exclusivamente à escrita. “Ele se afastou da sociedade, do pessoal do tempo dele e ficou escrevendo em casa. Passava as madrugadas acordado, estudando e datilografando”, explica a filha.
O volume da produção impressiona. Segundo Mary Ellen, foram encontrados cerca de 50 livros inéditos, entre poesias, ensaios e obras de crítica. A primeira reação, admite ela, foi pensar em descartar o material. “Eu costumava dizer que ia colocar fogo em tudo, porque era muita coisa”. A percepção mudou após um encontro com o filho do jornalista Juca Pontes. “Ele disse: ‘Isso aqui é uma riqueza. É um crime você tocar fogo nisso’. Daí eu fiquei perturbada do juízo, sem saber por onde começar”.
Poeta do abstrato
Dunas de Cristal agrega três poemas longos – “Sementes de Araçá”, “Ponto de passagem” e o homônimo “Dunas de cristal”). Os textos abordam temas como infância, velhice, morte e a própria esperança.
“É uma poesia, a princípio, um pouco hermética”, analisa o escritor e crítico literário Hildeberto Barbosa Filho, prefaciador da obra. “É de um nível simbólico refinado. Você lê um texto e vai descobrindo que há um fio, mas à primeira mão não é muito perceptível. Agora, claro, uma poesia formalmente muito bem realizada. Percebe-se que ele tem domínio da técnica (do verso, da métrica), mas é uma poesia cuja temática é abstrata”, acrescenta Hildeberto.
Conforme o crítico, entre outras tematizações, Diluída forma versa a respeito da própria criação, em movimento metapoético, bem assim motivos filosóficos, como a passagem do tempo, dentro de um registro textual rigoroso que muito o faz lembrar a geração de poetas de 1945, compromissada com o refinamento formal e em recuperação a formas fixas tradicionais, nomeadamente o soneto.
“Acho que os camaradas viveram a diluição da proposta modernista, em poesia que recupera a marca clássica, de uma poesia erudita. Ecoa na poesia dele os postulados da geração de 45; traz à tona vocábulos que não são muito usados”, pontua.
Entre outros achados inéditos de Gemy Cândido, há projetos de fôlego. Um deles é o Dicionário da Literatura Paraibana, com aproximadamente 500 páginas, além de Esboço da Poesia Paraibana. “Meu intuito é apresentar ele [Gemy] ao mundo. Os livros estão sendo vendidos para que eu possa arrecadar dinheiro e lançar o que ainda tenho em casa. Enquanto tiver condições, vou continuar lançando o que ele deixou”, conclui a organizadora.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de agosto de 2025.