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literatura e música

Encontro forjado na palavra

publicado: 04/12/2025 08h53, última modificação: 04/12/2025 08h53
Braulio Tavares e Jessier Quirino fazem apresentação juntos hoje, na Casa Furtacor, em João Pessoa
2025.10.26 1ª Flor Braulio Tavares © Leonardo Ariel (29).JPG

Braulio Tavares foi de Campina para o Rio levar a carreira de escritor e compositor | Foto: Leonardo Ariel

por Esmejoano Lincol*

No fim dos anos 1960, um grupo de adolescentes campinenses decidiu dar vazão à sua admiração pelos Beatles e montar um grupo cover da banda inglesa. Nasciam Os Sebomatos, que, numa de suas formações, contavam com a presença de certo menino cabeludo, fazendo as vezes de John Lennon: Braulio Tavares. Da plateia, num primeiro vislumbre daquele que, no futuro, seria seu colega de profissão, estava o também rapaz Jessier Quirino. Cinco décadas depois de um encontro ao som de “Help” e “Ticket to ride”, Braulio e Jessier trocam Liverpool por João Pessoa Num Encontro Memorável. O show assim intitulado acontece hoje, a partir das 19h, na Casa Furtacor, situada no bairro do Castelo Branco, na capital. Os ingressos estão esgotados.

A dupla de Campina Grande, explica Braulio, não criou roteiro específico para essa apresentação, mas trará em seus repertórios, uma coletânea de poemas e canções autorais, em tempos alternados para cada artista. Ele e Jessier alimentaram parte desse arcabouço em reuniões pessoais “sem público”, e em eventos artísticos pontuais, ao longo das décadas.

“Não é um espetáculo de ‘show business’. O atrativo talvez seja a raridade. Somos amigos há mais de 30 anos, mas será a segunda vez que nos apresentamos em público; a primeira foi na mesma Furtacor, de Ramón e Rita, quando funcionava numa casa em Manaíra, em 2018 ou 2019. São encontros informais, espontâneos, sem o rigor dos grandes espetáculos”, adianta Braulio.   

Voltando no tempo, Jessier rememora que, depois da fase do Sebomatos, ele passou a acompanhar, à distância, o trajeto do “Lennon paraibano” nas letras. A partir da criação de Trupizupe, o Raio da Silibrina, tipo cordelístico e espécie de alterego de Braulio, Jessier produziu como “resposta” o Rasga-Rabo, o Bagunçador de Bagunça. 

Jessier Quirino ficou pelo Nordeste construindo seu sucesso nos palcos | Foto: Max Brito/Divulgação

“Somente nos anos 1990, é que conheci Braulio pessoalmente — pessoa muito acessível, simpática. Nos encontramos na casa do cunhado dele. Fiz uma ‘resposta’ [em versos] para o Trupizupe e apresentei a minha versão e a dele. Fizemos um rápido ‘confronto’, assim, bem engraçado, mas eu tive certa ‘vantagem’, porque ele não conhecia a minha resposta”, sustenta, Jessier.

Com menos parcerias em conjunto do que o público e do que eles mesmos gostariam, Braulio e Jessier mantiveram a peleja restrita às conversas entre amigos. Esse desafio amistoso em formato de rima tornou-se público por meio do livro Galos de Campina, lançado há sete anos e composto de 27 estrofes em estilo de martelo agalopado.

“Em Galos de Campina [que saiu pela editora Bagaço, de Recife], imaginamos um desafio fictício, intercalando versos meus e versos dele. A questão básica é que tanto eu quanto Jessier somos letristas, poetas — a letra flui muito mais facilmente do que a melodia. Somos como dois jogadores, num time de futebol, com características parecidas, disputando a mesma posição”, aponta Braulio.

Da mesma família

Com a carreira voltada, a princípio, para a arquitetura, Jessier manteve a arte em segundo plano. A virada de chave ocorreu nos anos 2000, época em que Braulio já estava consolidado na literatura e nos palcos. Outro aspecto que difere a dupla é o fato de Jessier ter optado por permanecer na Paraíba; Braulio, ao contrário, rumou para o Sudeste nos idos de 1980. 

“Me afastei da arquitetura numa ocasião em que o AutoCAD entra com a tecnologia na área. E eu sou um arquiteto de desenhar em lapiseira e papel. Ao mesmo tempo, comecei a ser bastante festejado em Recife, com a publicação do primeiro livro, além da ligação familiar que eu tenho, filhos, mulher...”, justifica Jessier.

Partindo para as similaridades entre os parceiros, a observação do cotidiano é uma das bases para a condução dos textos de ambos. É o Raio da Silibrina quem assevera aquilo que ele e o Bagunçador da Bagunça ainda mantêm em comum, apesar das perspectivas diferentes sobre a profissão — as referências que constituíram os artistas que eles são atualmente.

“As fontes literárias e poéticas, incluindo aí a cantoria de viola, com os mestres repentistas de todos nós, e a poesia matuta, que Jessier cultiva mais dedicadamente do que eu, com influências que vêm desde Zé da Luz, Patativa do Assaré, José Laurentino... tudo isso faz parte da nossa bagagem, o que não impede de gostarmos de MPB e de música internacional”, destaca Braulio.

Outra coincidência: a família do Silibrina também ostenta o sobrenome “Quirino”, mas apenas dois dos irmãos de Braulio absorveram a alcunha. “Eu disse: ‘Braulio, teu ‘Quirino’ é de onde?’. E ele: ‘É de Coxixola [município da Borborema]’. Meu pai também é de lá, então certamente nós temos algum parentesco de ‘primos’ mais afastados”, convenciona Jessier. 

Sobre parcerias futuras entre os “parentes distantes”, o Bagunçador revela que convites não faltam. As dificuldades para engatar uma possível turnê repousam da distância temporal e nas “várias frentes” de trabalho que Braulio equilibra, na literatura, no teatro e no campo audiovisual. “Mas as portas estão abertas para shows pontuais”, ressalta Jessier.

Por fim, a reportagem questiona: o que cada artista admira no trabalho do outro? Braulio Tavares é quem começa a “peleja”, sinalizando que Jessier é um exímio “prestador de atenção”, das particularidades dos sujeitos, cumulando, por fim, num registro quase infinito de saberes; cada texto, encerraria, por conseguinte, um perfil etnográfico da sociedade.

“Outra coisa que admiro é a fluência e a naturalidade da invenção de palavras, coisa que o povo, curiosamente, faz com mais naturalidade do que os poetas. E existe a capacidade de criar e reproduzir historietas engraçadas em verso, e nesse ponto um cara de geração mais jovem, como ele, disputa na mesma raia que os mestres Chico Pedrosa e Dedé Monteiro”, resume.

Jessier Quirino replica, comentando aquilo que mais admira em Braulio: a capacidade que este tem de dar conta de tantos projetos, em segmentos tão diferentes. E não somente nos trabalhos mais notáveis e conhecidos, como na escrita de ficção especulativa, como nos ofícios que permanecem mais incógnitos, a exemplo da tradução de livros.

“Ele abraça tantas causas e com tanto talento. Eu acredito até que ele não tem o reconhecimento que merece. A gente vê tantas pessoas serem festejadas por um determinado valor. E ele, com tantos valores, merecia ser mais. O Brasil é um pouco injusto com as pessoas mais novas. Porque Braulio, desde muito novo, faz isso com muita qualidade”, conclui.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 4 de dezembro de 2025.