O corpo de Cristo ainda não tinha sido depositado no Santo Sepulcro, quando, a alguns dias da Páscoa de 1987, o jovem dramaturgo Tarcísio Pereira, pôs no papel, “num jorro só”, como relembra, o seu primeiro projeto literário. A urgência tinha motivo: o assombro com que soube de um caso real de catalepsia, ocorrido na capital, com um conhecido. Partindo desse caso emblemático, ele criou a trama que sustenta o seu livro de estreia, publicado em 1993. Celebrando os 30 anos da obra e os 60 anos de vida, Tarcísio relança, hoje, o romance Agonia na Tumba, numa edição revisada pela Selinho Editorial. O evento, aberto ao público, acontece a partir das 18h, na sede da Academia Paraibana de Letras (APL), no Centro de João Pessoa.
Essa (re)estreia contará com a apresentação do acadêmico Thélio Farias e um show musical de James Nóbrega. O livro narra o drama de Felizardo, que acorda sepultado, dentro de um caixão. Enquanto traça planos para escapar do esquife, ele recorda outros momentos em que esteve perto da morte. O cachorro, que na nova edição estampa a capa, é personagem fundamental para o imbróglio.

- O cachorro na capa do livro é personagem fundamental na trama de Tarcísio Pereira | Foto: Divulgação/Selinho
“Eu tinha apenas 21 anos de idade e fui estimulado por essa ocorrência em João Pessoa. No dia seguinte após o velório, chegou a notícia de que escutaram gritos vindo do cemitério e os latidos de um cão. Quando abriram a cripta, viram que o homem estava emborcado lá dentro. Foi catalepsia, a pessoa ‘morre’ e ‘volta’”, explica.
Àquela altura, Tarcísio, natural de Pombal, já escrevia para teatro. Reticente, num primeiro momento, quanto a trazer a público sua obra, o autor guardou o texto por seis anos, até decidir tirar os manuscritos da gaveta e datilografá-los, em 1993. Um dos primeiros a ler Agonia na Tumba foi W.J. Solha.
“Ele logo escreveu um texto, que foi publicado no extinto Correio da Paraíba, dizendo que era o quarto maior romance do estado. Fiquei envaidecido, mas muito preocupado. ‘Tem certeza que é isso que você quer dizer?’. ‘Sim. É isso e acabou-se’, foi a resposta dele. Acabei incluindo essa crítica no prefácio do livro depois”, revela.
Tarcísio e seu trabalho começaram a circular e ganhar reconhecimento, mas não somente entre os leitores. A primeira tiragem de Agonia na Tumba, pela editora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), inaugurou o selo de novos autores da instituição e angariou uma indicação ao prêmio Moinho Santista, com o apoio do então reitor, Neroaldo Pontes.
“Foi uma repercussão enorme. Recebi outras críticas muito positivas do pessoal daqui, como Hildeberto Barbosa Filho, Sônia Ramalho Farias, Altimar Pimentel. E outras, de nomes nacionais, como Nelson Werneck Sodré, Henrique L. Alves, que era da Academia Brasileira de Letras, e Fernando Peixoto, grande teatrólogo brasileiro”, destaca.
Esse êxito fez com que Tarcísio perseverasse como literato, num trabalho paralelo e ativo em relação à sua carreira dramatúrgica, seguindo com ambos os ofícios nessas três décadas. Mas, apesar do tema instigante, o pombalense assevera que nunca pensou em adaptar Agonia na Tumba para os palcos.
“Enquanto ele quebra as tábuas do caixão, tentando sair, há um momento meio policial, psicológico, em que ele busca entender o motivo de estar ali. E, nos delírios de Felizardo, ficam passando esses outros eventos, como num afogamento. Mas eu não consigo ver [uma adaptação], sendo algo tão fechado”, analisa.
Menos palavrões
A nova edição do livro contou com o apoio de Antônio Mariano, paraibano responsável pela Selinho. Para esta nova tiragem, Tarcísio Pereira fez uma revisão acurada, mas não somente ortográfica. Determinados vícios estilísticos e o excesso de palavrões do texto original foram suavizados ou suprimidos agora. Apesar disso, ele não trata o caso como autocensura.
“A essência é a mesma. Tem escritores que acham que os livros não devem ser mexidos porque refletem o momento do autor. Entendo, mas não compartilho muito disso, não. A gente vive em estado de renovação. Principalmente hoje, numa era de uma linguagem mais facilitada para alcance de leitores”, justifica.
Entre as supressões mais significativas, está a citação nominal à própria catalepsia, algo que não faria sentido sair da boca do personagem, diante de seu contexto social, segundo Tarcísio. Outra se refere ao tratamento homofóbico dado a um dos personagens, chamado, nas edições anteriores de “pederasta gordo”.
“Corria o risco de ser ‘cancelado’! Quando eu digo que ‘limpei’ o livro, falo do meu cuidado, da minha responsabilidade com os novos conceitos de diversidade, coisa que não se falava naquele momento. Mas não é que eu vá ficar preso à militância, digamos assim. O escritor não tem obrigação com militância. Ele tem que ter responsabilidade humana”, sustenta.
Ao divulgar que faria tais mudanças, Tarcísio confidencia que escutou de um “colega famoso” que não iria a este relançamento como forma de protesto. O autor diz que respeita essa decisão, mas ressalta que a revisão dos conceitos e expressões está apoiada na sua prerrogativa como criador e no desejo que tem de satisfazer com a obra.
“José Américo de Almeida reescreveu A Bagaceira 13 vezes depois de publicado. E olha que, quando ele publicou, lá em 1928, já foi considerado pela crítica brasileira um marco do regionalismo. Há outros dois romances publicados logo após Agonia na Tumba e que pretendo revisar: Como São Jorge na Lua (1996) e Dom Quezales de Condor (1998)”, antecipa.
Mais de 20 livros depois, Tarcísio voltou a tocar no tema da morte. A Farra do Meu Cadáver, publicado em 2023 por meio da Penalux, remonta o longo velório de João Pessoa, mas na perspectiva do morto. Apesar da similaridade, o literato diz que este outro projeto não tem nenhum outro ponto de intersecção com seu romance de estreia.
“Ele demorou dias para ser enterrado. A União passou meses publicando sobre. E houve a grande apoteose, quando o corpo chegou ao Rio de Janeiro, ‘humilhando’ o presidente eleito, Júlio Prestes, que também estava chegando de uma visita aos Estados Unidos. O título veio de um artigo que li, ‘O que fizeram com o cadáver foi uma verdadeira farra política’”, esclarece.
Tarcísio planeja a estreia gradativa de cinco novas obras, que vão de uma ficção histórica sobre o explorador Teodósio de Oliveira Ledo a um romance sobre a cannabis. Sobre Agonia na Tumba, assinala aquilo que de positivo colheu com o projeto, salientando os feedbacks que continua a receber, de colegas e de leitores de diferentes gerações, da história que escreveu há quase 40 anos. Quando questionado sobre o que ele faria se estivesse no lugar de seu personagem desafortunado e acordasse dentro de um caixão, o autor nos responde, bem vivo: “Eu morreria na hora!”, conclui rindo.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de novembro de 2025.