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Herança poética

publicado: 27/10/2025 09h12, última modificação: 27/10/2025 09h12
Matheus Nachtergaele conta, em conversa com A União, como reencontrou a mãe nos poemas deixados por ela e publicados por ele em livro que lança hoje, na Festa Literária do Extremo Oriental
2025.10.23 Matheus Nachtergaele © Carlos Rodrigo (2).JPG

“A Mariposa” é lançado em edição “manipulável” pelo leitor | Carlos Rodrigo

por Esmejoano Lincol*

“Eles diziam, ‘teu sorriso é o sorriso da tua mãe. tuas mãos são as mãos da tua mãe’. E eu olhava as minhas mãos, procurando por ela”. O ator Matheus Nachtergaele percorre, desde a juventude, vielas caleidoscópicas em busca de respostas sobre o passado da mulher que lhe deu à luz. Parte dessa ânsia foi apaziguada com a descoberta de uma série de poemas, escritos por Maria Cecília Nachtergaele. Os textos foram reunidos na coletânea A Mariposa (Polvilho Edições), que chegou a público em 2016. O artista lança, em João Pessoa, uma nova edição da obra, dentro da programação da Festa Literária do Extremo Oriente (Flor): será hoje, a partir das 18h30, na sede da Academia Paraibana de Letras (APL), no Centro da capital. A entrada é franca.

A Mariposa tem suas páginas diagramadas em formato de lâminas, que podem ser modificadas quanto à ordem no livro. O projeto reúne 28 poemas, num tom urgente e pessoal: “Vai que você vai andar por um lugar que eu fui / Vai que você vai andar carregando a nossa cruz / Vai levando o morto nos teus braços / No regaço, nossa dor”, escreve Cecília, em um deles.

“A primeira edição (esgotada) parecia uma caixinha de joias. E agora a gente fez em acrílico, com capa e contracapa pretas, e com impressão em relevo dourado. Você vai poder alternar a capa do livro, com o teu poema preferido, ali, exposto. E você pode mantê-lo como um objeto de cabeceira”, explica Matheus, em entrevista exclusiva para A União.

Os poemas foram entregues ao artista pelo pai, Jean Pierre, na primeira metade dos anos 1980. Os textos, datilografados e com algumas anotações, estavam organizados em uma pasta azul. O encontro foi difícil. Na ocasião, Matheus ouviu pela primeira vez, com todas as letras, a informação de que a mãe havia cometido suicídio, no dia de seu batizado.

“Fomos para a casa de praia que tínhamos em Ubatuba (Litoral paulista). Chegamos bem cedo e ele começou a beber. Eu acho que ele errou, podia ter esperado estar mais calmo, mas foi como ele teve coragem. A notícia me veio, assim, de uma forma atabalhoada, toda misturada com lágrimas e palavrões. Essa memória para ele era muito dolorida, presente”, analisa.

Antes, a tragédia foi omitida e, depois, tergiversada em versões diferentes sobre Cecília ter falecido no parto, ou vítima de atropelamento. Enquanto a verdade não vinha à tona ele construía a imagem de uma “mãe idealizada”, como ele mesmo define, por meio das comparações com ela, na aparência, e graças ao legado material, em livros, que Cecília deixou.

“Ela morreu com 22 anos já tendo lido muita coisa boa. Não é à toa que os poemas são bons, ela estava bem formada. E eu tinha as fotografias dela, que minha avó paterna tinha guardado. Mas nenhuma comigo. Essas eu só fui receber recentemente. Uma tia encontrou slides com fotos dela na maternidade, na lua de mel, e também comigo, amamentando”, revela.

Braço de ferro

Após aquela dura conversa com o pai, Matheus caminhou rumo à praia. As areias de Ubatuba, onde folheou os poemas, foram as únicas testemunhas da epifania que se seguiu. Ele diz que mesmo sendo muito jovem para alcançar a total compreensão dos textos num primeiro momento, ele entendeu, naquele instante do que — ou de quem — era fruto.

“Amei mais ainda a minha mãe. Rapidamente, o mundo interior dela entrou para dentro de mim. E quando fui me tornando ator, lia de vez em quando os poemas para amigas, atores, diretores de teatro. E todo mundo dizendo, ‘Tem que publicar, é bom, é bonito. É pré-feminista’. Alguns parecem inclusive ter sido feitos para mim, como testamentos”, afirma.

O material ficou guardado, como um tesouro. Até ser “desenterrado”. Convidado para integrar o Festival de Inverno de Ouro Preto, em Minas Gerais, em 2013, Matheus criou, para a mostra teatral, um monólogo baseado nos poemas – Processo de Conscerto do Desejo. O barbarismo “conscerto” é proposital, um paralelo entre o ato de “consertar” e a presença de um músico, com piano ou violão — um “concerto” que pontua os textos declamados.

“Em alguns momentos, você terá a impressão de que é Cecília quem está falando, já que os poemas foram escritos por ela. Por outro lado, também há o filho, celebrando e também se queixando da falta dela. Mas, no fundo, temos um arauto, uma entidade teatral, ali no palco”, sustenta.

Além do ofício como intérprete, Matheus tem exercitado a autoria no cinema — um dos roteiros que escreveu, A Festa da Menina Morta (2008), foi sua estréia como realizador. A sétima arte, a propósito, é o segmento em que o artista depositou boa parte de sua energia, mas ele não descarta lançar-se na literatura, numa perspectiva menos braçal que no teatro.

“Você precisa do teu fôlego, da tua carne. Talvez, com o cansaço, essas outras atividades onde meu corpo não vai estar tão envolvido, ou não tão diretamente envolvido, possam ganhar mais espaço. Mas no meu tempo. Sentar para escrever pode ser mais agradável em algum momento do que me expor em cena como ator. Porque dói ser ator”, atesta.

Nunca apresentado na Paraíba, Matheus pretende trazer o monólogo a João Pessoa em breve. O artista evoca seu agnosticismo para dizer que não pensa na mãe como um ser etéreo, que observa a sua empreitada de longe, mas em alguém que está presente.

“Faço um braço de ferro com a morte da mamãe e com a minha também, com a minha vida e a morte dela. Independente do querer de mamãe, eu me vingo do suicídio dela, mantendo-a viva no livro e a cada noite de espetáculo. Porque metade de mim é ela. Queira a mamãe ou não, ela é obrigada, por puro amor e desejo, a ficar viva comigo”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de outubro de 2025.