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Jornada de relacionamento

publicado: 18/11/2025 08h45, última modificação: 18/11/2025 08h45
É assim que Madu Ayá define a coleção de músicas de seu EP “Olhares Canibais”, que chega hoje às plataformas
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Madu Ayá viralizou nas redes sociais cantando uma canção em homenagem ao Botafogo-PB | Imagem: Divulgação

por Esmejoano Lincol*

A paraibana Madu Ayá aguça os sentidos num projeto que cheira a música nova. O dedilhar dos violões e o escrever das composições ampliam seu trabalho autoral para além de seu próprio tato e apresentam como resultado o EP Olhares Canibais, que chega hoje às plataformas de streaming. Por meio desse título, ela entra noutra forma de observação do mundo. A artista explora as maneiras de ver e de ser vista. A língua também percorre esse espaço graças a “O gosto dos sais”. Quem ajuda a completar, agora, essa percepção é o público, com o quinto e último sentido: a audição.

Danyllo Xarles e Eduardo Araújo dividem a produção das quatro músicas de Olhares Canibais — o primeiro está a cargo da faixa homônima,Volta” e “O gosto dos sais”; o segundo ficou com “Braille”. Os arranjos mesclam elementos orgânicos, como o violão, e batidas eletrônicas que dão uma roupagem mais nostálgica às faixas.

Madu alicerça esse trabalho com letras que falam sobre relacionamentos, mediado por contatos sinestésicos. “Acredito que em conjunto fomos construindo as ideias a ponto de desaguar nos resultados. Queríamos uma espécie de pulsar regional e pop, de certa forma experimentar as faces que cada uma delas poderia ter”, ela sustenta, sobre a colaboração com os dois produtores. 

Foto: Leo Accioly/Divulgação

A escolha de “Olhares canibais” como título do EP é justificada pela força que essa expressão tem, segundo sua própria autora. O adjetivo ferino, que denuncia a vontade de consumir, esconde, por outro lado, a reconstrução, mediante a possibilidade de tragar e de suplantar o outro ou a si mesmo — essa é a síntese do disco, também de acordo com Madu.

“Minha ideia é formar, com a ordem das canções, uma jornada de relacionamento. Tudo começa com a harmonia de ‘Braille’. Em seguida, passo por um término marcado pela vontade de retornar, em ‘Volta’. Depois, uma saudade com gosto de lembrança e de ‘nunca mais’, em ‘O gosto dos sais’, até chegar a ‘Olhares canibais’ — um amor com fome de superação”, explica.

Ao constituir essa trajetória sobre os ciclos de uma relação, ela recorre a expressões e a uma poética que complementa a literalidade dos versos — “Me chamou de onça pintada e me disse ‘Vem’ / Te agarrei com as minhas sardas e disse: ‘Você sabe...’” (“Braille”); “Tatuei em mim o rosto de um amor passado / Pra lembrar que tudo passa” (“O gosto dos sais”).

“Essa é uma característica que carrego desde as minhas primeiras composições. As metáforas e os sentidos conotativos me ajudam a transmitir as sensações mais profundas que quero descrever. Como ‘um sorriso de escudo que vira lança’, ‘um coração ferido por um olhar banal’. As poesias que escrevo também funcionam da mesma maneira”, diz.

À exceção de “O gosto dos sais”, as demais canções haviam sido gravadas há algum tempo e permaneceram guardadas à espera de um álbum que as pudesse unir conceitualmente. Com essa estreia, a própria Madu também aponta para o fim de um ciclo musical e o começo de novas empreitadas, após circular com a turnê, que planeja para breve.

“É permitir também que [as faixas] sigam seu próprio caminho, já que todo lançamento carrega surpresas. Os shows de Olhares Canibais, em 2026, já estão sendo marcados, assim como planos mais auspiciosos. Tenho sentido que está na hora de começar meu primeiro álbum. Acredito que vou me dedicar a isso com mais entrega no ano que vem”, planeja.

Muriçocas e Botafogo

A afinidade de Madu Ayá com os segmentos culturais parte do sangue, graças à influência indireta do pai, músico, e ao contato estreito com linguagens artísticas desde muito jovem, nas aulas de balé e, posteriormente, nas lições de canto e violão. Foi por meio desse instrumento, a propósito, que a artista começou a vislumbrar a profissão na qual persevera.

“Ganhei meu primeiro violão aos nove anos de idade e, pouco tempo depois, já criava meus versos. Desde então, nunca parei. Compor sempre foi o meu jeito de colocar para fora a minha visão de mundo e tudo o que eu sentia. No fundo, eu sempre soube que esse seria o meu modo de me comunicar com a vida e de externar a minha arte”, rememora.

Na infância, enquanto acalentava o sonho de ser intérprete profissional, ela seguiu compondo, baseando-se nas histórias que surgiam em sua mente inquieta e musical. A primeira experiência pública (e marcante) nos palcos também foi precoce — aos 14 anos, Madu fez um show numa festa de rua, para um público extenso e receptivo; um incentivo grande, ela resume.

“Eu senti que queria fazer aquilo pra sempre. Mas, sem dúvida alguma, o que deixou uma marca no meu coração foi a primeira vez que cantei em um trio elétrico, em 2018, no bloco Muriçocas do Miramar. Lá, enquanto eu cantava, senti um abraço na alma que nunca tinha sentido. A energia das pessoas era simplesmente incrível”, lembra, com orgulho.

Um ponto de virada para Madu aconteceu em 2019, quando ela viralizou em suas redes sociais dando voz a composição em homenagem ao Botafogo-PB. A faixa tornou-se uma espécie de hino extraoficial do time e gerou convites para compor jingles institucionais — um de conscientização sobre o câncer de mama, outro sobre o combate à importunação sexual no Carnaval.

“Minha voz e minhas criações são ferramentas de conscientização sobre essas pautas e sobre tudo aquilo diante do qual, como artista e cidadã, eu jamais ficarei calada. Tudo isso é muito importante pra mim. Me sinto contribuindo com o mundo, buscando mais respeito, leveza e compartilhando essas informações”, aponta.

Em 2021, em meio à pandemia, ela começou a difundir suas canções nas plataformas de música e de vídeo. Duas delas, “Me tira d’eu” e “Me devora na manha”, ganharam videoclipes gravados em pontos turísticos paraibanos, como a Praia do Jacaré, em Cabedelo. As referências que consolidaram o seu trabalho autoral foram múltiplas.

“Em casa eu gostava de ouvir mulheres como Rita de Cássia (especificamente as músicas voz e violão), Cássia Eller, Roberta Miranda. No início da adolescência, passei a ouvir muito Rita Lee, que, sem dúvida alguma, foi uma inspiração muito forte na minha vida (até hoje). Eu olhava para ela tão livre e pensava que eu também poderia ser quem eu quisesse”, sinaliza.

Graças a essa visibilidade, Madu Ayá conquistou respeito imediato. Ela assevera que nunca sentiu preconceito ou desconfiança de terceiros — sobretudo homens —, mas ressalta que o meio musical ainda é hostil contra as mulheres em posição de destaque, o que demanda, por vezes, o dobro de esforço que os artistas masculinos empreendem, alçando êxito similar.

“Além das músicas que crio sozinha, também tenho amigos e parceiros de composição, como Renata Arruda, Fuba e Dann Costara — pessoas da cena artística local, alguns que estão comigo desde o início, outros que chegaram depois, mas que amo tê-los comigo. Ninguém faz nada sozinho. E esse acolhimento é sempre importante na jornada da vida”, finaliza.  

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de novembro de 2025.