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Jurema Sagrada em concerto

publicado: 23/07/2025 08h52, última modificação: 23/07/2025 09h47
Projeto musical leva, hoje, tradição afro-indígena, patrimônio imaterial da Paraíba, à Sala Radegundis Feitosa, na UFPB
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Na Mata Tem Morador: Ogan Márcio, Pai Carlos, Mãe Renilda, Laíz de Oyá e Dani Baldissera | Fotos: Camila Silva/Divulgação

tags: Jurema Sagrada , UFPB , Concerto , Patrimônio

por Esmejoano Lincol*

A Jurema Sagrada, religião sincrética afro-indígena, foi alçada, na semana passada, a patrimônio imaterial da Paraíba, a partir da aprovação da lei nº 13.760/2025, sancionada pelo governador João Azevêdo. Celebrando essa conquista, o Departamento de Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (DCR/UFPB) apresenta, hoje, a partir das 18h, um recital didático com a participação do grupo musical Na Mata Tem Morador, do Axé Ojú Ofá Dana Dana: os artistas entoam e comentam pontos tradicionais na Sala de Concertos Radegundis Feitosa, situada no Departamento de Música (Demus), Campus 1, também na capital. Para participar, é necessário inscrever-se gratuitamente no site do Sigeventos.

O recital integra uma programação ainda maior, do seminário Cantos da Jurema Sagrada, que contará, ainda, com a mesa “Pontos e rezas: a poética do corpo-voz na Jurema Sagrada”. Participam do encontro os docentes: Leyla Brito, ligada ao curso de Ciências das Religiões; Fábio Ribeiro, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Música (PPGM), na mesma instituição; e Stênio Soares, membro do Programa de Pós-
-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro).

O culto à jurema, cujas origens remontam à época da colonização, é realizado, na prática, por meio do uso do vinho da planta homônima, cujos efeitos alicerçam a interação dos adeptos com entidades sagradas. A presença dessa religião no ambiente acadêmico também é um avanço recente: em maio, a UFPB criou a primeira disciplina totalmente dedicada à Jurema Sagrada, a partir de acordo firmado entre a instituição local e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), por meio da Pós-Afro.

À frente dessa cadeira está Stênio Soares. Ele afirma que não existem dados concretos sobre o número de adeptos da Jurema Sagrada no Brasil, mas evoca número divulgado no último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com dados de 2022: pouco mais de 1% da população brasileira declarou professar religiões de matriz africana. “Pesquiso, especialmente, o que a Jurema Sagrada sofreu no período da Ditadura Militar. Isso provocou sua própria invisibilização no campo da luta contra a opressão”, remonta. 

Jurema como estrela

O conjunto musical Na Mata Tem Morador, do Axé Ojú Ofá Dana Dana, é formado por Mãe Renilda de Oxossi, Pai Carlos, Ogan Márcio, Laíz de Oyá e Dani Baldissera. Natural de Recife, Laiz reside em João Pessoa há duas décadas, relata ser iniciada no Candomblé há quatro anos e diz cultuar a Jurema desde 2018, pelo menos. “Aprendendo com os mestres, mestras, caboclos, pretos e pretas velhas, caboclinhas, as rezas, os cantos, vendo e vivendo a ciência dessa ritualística que é tão sagrada, para um dia dar esse passo também na Jurema”, expressa.

Sobre a música que ela interpreta fora dos terreiros e a influência da Jurema Sagrada, ela diz não ser possível desvincular uma cultura da outra, indicando, ainda, que o exercício instrumental e vocal dos pontos, durante as cerimônias, ajudou a potencializar seu trabalho como intérprete.

“Eu agradeço por ela ser um portal de saúde, cura, e crescimento. Na Jurema, eu cuido e sou cuidada. Ela é como uma estrela, está aí para nos iluminar. Cabe a nós também enxergarmos essa luz e brilharmos com ela”, simboliza.

À frente desse grupo, musical e espiritualmente, Mãe Renilda explica o significado do nome dado ao terreiro: Casa do Olho de Oxossi. Ela também revela que cinco músicas serão executadas na noite de hoje; até o momento da entrevista, os artistas tinham ensaiado três faixas.

“Uma delas é ‘Abre a minha gira’, que é uma evocação que abre os trabalhos da gira, pedindo licença, permissão, à Jurema Sagrada. Depois vem o ‘Ponto de Oxóssi’, um grande orixá que fortalece a Jurema e que é o nosso grande caçador”, pormenoriza.

 Adepta da Jurema desde os nove anos de idade, afirma ter sido curada de um grave problema de saúde a partir de sua introdução na religião. Exaltando o fato de Jurema ter sido eleita patrimônio cultural e imaterial da Paraíba, Mãe Renilda sugere que o reconhecimento pode render outras ações afirmativas, como o seminário da UFPB. “Nossa intenção maior é desconstruir o imaginário de muitas pessoas de que a Jurema faz mal a alguém, isso não é verdade, pois essa planta só nos traz o bem”, conclui.

Palavra cantada

A apresentação musical e o seminário perfazem ações do projeto Museu como Encruzilhada e na Encruzilhada, coordenado por Stênio Soares. A partir de parceria com a Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (Semdh), o grupo pretende subsidiar a criação do Museu da Diáspora Africana e Etnias Paraibanas.

“O evento de hoje é o desdobramento da disciplina, um projeto que tem interface com pesquisa e extensão. É uma forma de mediação cultural, de contextualizar aquela peça musical”, destaca.            

Assinalando a importância da ressignificação do espaço onde esse evento acontecerá, logo mais, Stênio informa que o recital didático é uma prática comum no âmbito da música de concerto, mas que essas atividades poderão ser encaradas sob uma nova perspectiva. “Vamos fazer, pela primeira vez, com música de terreiro — música sacra, na verdade. A palavra cantada também é reza e faz parte do rito. Mas essas categorias que uso para explicar são brancas, européias. No caso da Jurema, tudo isso tem um único nome: ponto”, resume.

Comentando sobre o sincretismo presente na religião, o docente atesta não ser possível segmentar, hoje, os elementos de constituição indígena ou africana, que se relacionam há muitos séculos em outros cultos, inclusive. Todavia, ele ressalta a importância da disciplina e da circulação da Jurema Sagrada no âmbito da UFPB.

“Por conta de um racismo religioso, a religião vai ficando ‘escondidinha’. Temos o coco de roda, uma brincadeira popular, que não tem, necessariamente, vínculo com religiosidade, mas que tem uma ancestralidade, numa cultura religiosa. Quando se dá essa visibilidade, você está dizendo para as formações acadêmicas ou científicas que ali, naquela cultura religiosa, reside, conhecimento”, sinaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de julho de 2025.