O Varadouro, bairro histórico de João Pessoa, guarda memórias do escritor Políbio Alves. Ali, ao largo do Rio Sanhauá, o poeta acendeu relâmpagos e catou do mangue da vida infante matéria-prima para o ofício literário. Com tudo o que viveu durante parte da infância, construiu as imagens de seu poema longo, Varadouro, revisitadas pelas lentes do fotógrafo Antonio David em Varadouro – Navegando Imagens, livro que será lançado na próxima terça (26), às 19h, no Sesc Cabo Branco, na capital. Publicado originalmente em 1989, ele retorna em edição revista pela Editora Tamarindo e conta, ainda, com textos do jornalista Gonzaga Rodrigues e do escritor Hildeberto Barbosa Filho.
A escrita do primeiro livro levou uma década — iniciada em 1976 e concluída somente em 1986. O motivo é óbvio para aqueles que conhecem o modus operandi de Políbio, marcado por incansáveis revisões e contínuos descartes. “Eu escrevo um texto, guardo, daí já vou pegar ele para rasgar. Eu rasgo mais do que escrevo. Tenho o maior respeito pelo leitor, porque se não tiver leitor, não tem escritor, não tem poeta”, afirma.
Políbio recorda que a criação de Varadouro está vinculada à sua vivência pessoal no mangue da região. “Eu fui criado dentro do mangue, garoto pobre. Quase morri afogado na Ponte do Baralho, catando caranguejo. Se não fossem os pescadores, eu não estaria hoje aqui para contar a história”.
Nascido em 8 de janeiro de 1941, na capital paraibana, Políbio Alves dos Santos foi alfabetizado pela mãe, Luzia Alves dos Santos. Na juventude, morou na Ilha do Bispo e no Varadouro, na Avenida 5 de Agosto, junto com a mãe e mais seis irmãos. Seu pai, Severino Pedro dos Santos, era caixeiro-viajante, mas foi Luzia, que era enfermeira, e o avô de Políbio, Zé da Luz, quem incentivou o gosto do menino pelas letras.
A primeira inclinação para a escrita surgiu por volta dos seis anos. Os livros foram seu divertimento na infância, nem por isso menos eufórica e deslumbrada. O escritor permaneceu no bairro até os 12 anos de idade, período em que começou a trabalhar. “Era uma escravidão. Eu trabalhava 20 horas para ganhar o salário mínimo. Eu não ia nem em casa”, recorda.
Foi nesse contexto de dificuldades que o contato com os livros surgiu como alternativa. Em uma escola de fundo de quintal, a criança humilde viajava pelo mundo inteiro e descobria um tesouro inominável. Como ele encontra a palavra certa para tudo, de pronto aponta uma metáfora para pôr no lugar da paixão que devota aos livros: loteria. Não é para menos, pois como se orgulha em dizer, os livros o salvaram.
Sua produção soma 10 títulos publicados, entre poesia, contos e romances. O primeiro foi O que Resta dos Mortos (1983), seguido por Varadouro (1989). Vieram depois Exercício Lúdico – Invenções & Armadilhas (1991), Passagem Branca (2005) e Os Objetos Indomáveis (2013). Em 2015, lançou Os Ratos Amestrados Fazem Acrobacias ao Amanhecer (contos) e La Habana Vieja – Olhos de Ver (poesia). Dois anos mais tarde publicou A Leste dos Homens (romance). Os títulos seguintes foram Acendedor de Relâmpagos (2018), Outono – Memorial da Escritura (2024) e Aquele Homem Devorava Ervas Amargas (2025).
A obra do escritor alcançou, inclusive, reconhecimento institucional. Em 2001, recebeu a Medalha Poeta Augusto dos Anjos da Assembleia Legislativa da Paraíba. No ano seguinte, a Câmara Municipal de João Pessoa concedeu-lhe a Comenda Cidade de João Pessoa. Em 2022, foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e, nesse mesmo ano, sua produção literária foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial do Estado da Paraíba, pela Lei no 12.313, de 31 de maio, também reconhecida como patrimônio imaterial pela Câmara Municipal de João Pessoa.
Imagens épicas
Varadouro – Navegando Imagens chega ao público com fotos de Antônio David, inseridas em diálogo intersemiótico com o grande poema. “As fotos não são aleatórias. Cada parte do poema tem a ver com a foto. Nós fizemos, ultimamente, três viagens dentro do mangue, dentro de uma canoa, e fotografamos tudo ali. Eu digo que David é o poeta da fotografia. Ele tem uma sensibilidade à flor da pele”, observa Políbio.
Indagado sobre a origem da obra, Antônio David teve de relembrar o primeiro contato que teve com o escritor: “Eu já o conhecia através de encontros, lançamentos de livros e vernissages, isso nos anos 1980. E nos anos 1990, Jomard Muniz de Britto conheceu Políbio e se interessou pela obra dele. Foi feito um documentário e eu fui o fotógrafo de cena. A partir daí, ele disse que estava curioso em ver um trabalho meu”.
O desafio de navegar pela poética de Políbio e iluminar o pescado de seu manancial linguístico levou tempo para ser aceito. “Esse poema épico é muito polissêmico. Toda vez que eu leio, eu tenho uma interpretação. Por outro lado, ele tem uma inefabilidade, que eu não encontro palavras para descrever. Imagina você jogar isso dentro da estética fotográfica”, comenta David.
O resultado foi um conjunto de fotografias diversificadas que jogam luz na poesia atemporal, verdadeiro documento histórico para Antônio David, que quando olha para os arquivos de imagens do Centro Histórico de João Pessoa enxerga lacuna irremediável pelo tempo — função inconteste deste Varadouro.
“A iconografia da cidade ficou com buracos de 20 anos. Quem detinha muitas fotos eram os jornais. Correio da Paraíba e O Norte acabaram praticamente com os arquivos. Quando foi implantado o sistema offset, no corre-corre do fechamento, muita foto se perdeu. A iconografia de João Pessoa tem essa lacuna porque ninguém se interessou e os fotógrafos não tinham dinheiro para publicar livros”, contextualiza. Para superar os obstáculos da atual degradação urbana do bairro, Antônio recorreu a soluções visuais: “Eu pensei: vou tentar abstrair e usar a iluminação do nascer e do pôr do sol para esconder as feiuras e a dureza física dos casarões”.
Como a vida não basta, Varadouro – Navegando Imagens vem para recuperar o lugar originário, do mangue, do rio e seus habitantes, parte da narrativa épica de Políbio Alves, protetor das margens da história pessoense. “Eu nunca quis ser Machado de Assis. Eu sempre quis ser Políbio. Eu nunca quis ser Drummond, mas eu consegui ser Políbio. Porque aqui tem uma maioria de poetas que imitam Drummond e se acham melhor do que ele. Eu sempre quis ser Políbio Alves”, conclui o poeta.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 24 de agosto de 2025.