O incontornável legado de Jards Macalé para a música popular brasileira, materializado em projetos como o show O Banquete de Mendigos, os álbuns Aprender a Nadar (1974) e Contrastes (1977) e músicas como “Vapor barato” e “Mal secreto” também inclui indiretamente, sua personalidade irreverente e libertária e as histórias que cercam a trajetória do cantor e compositor fluminense. Nos idos de 1980, ele residiu por um curto espaço de tempo em João Pessoa, onde protagonizou uma história digna de livro.
Carmélio Reynaldo, pesquisador e professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), recordou em suas redes sociais que Macalé chegou ao estado como hóspede de Gilberto Vasconcellos, docente paulista que deu aulas no curso de Ciências Sociais entre os anos 1982 e 1983. O artista era frequentador assíduo dos bares da orla da capital e, ao mesmo tempo, conhecedor do cancioneiro da paraibana Cátia de França, que, àquela época, havia lançado os discos 20 Palavras ao Redor do Sol e Estilhaços.
Segundo do cantor Paulinho Ditarso, numa noite, num desses estabelecimentos, ele se aproximou de uma garçonete chamada Margarida e passou-lhe uma cantada citando os versos de uma poética canção de Cátia – “Coito das araras”, também gravada por Amelinha. A partir daqui, o relato aproxima-se da lenda.
“Soube que eles mesmos praticaram ‘o coito das araras’ numa das gameleiras de Tambaú! Três dias depois a gameleira caiu! A escritora Marília Carneiro Arnaud escreveu um texto relatando esse evento”, disse Paulinho.
Marília é reticente quanto a confirmar a veracidade da história, mas indica que a tal gameleira esteve firme nas imediações do antigo Elite Bar, na capital. O causo inspirou um conto homônimo à canção de Cátia, incluído no primeiro livro publicado pela autora – Sentimento Marginal, de 1987.
“Fomos apresentados lá no Baixo Tambaú, em meados dos anos 1980, justamente por Paulinho Ditarso, irmão de Diana Miranda. Ele era muito simpático, irreverente. Um músico singular”, rememora Marília.
Dentre aquilo que há de concreto referente ao artista está sua contribuição à arte. Nascido em 1943, no Rio de Janeiro, e batizado Jards, foi apelidado de Macalé, na infância, graças ao seu pouco talento no futebol, como referência a um jogador do Botafogo. Durante seus primeiros anos em atividade, ele chegou a assinar, inclusive, apenas Macalé. Cresceu com referências culturais diversas – do contato com os vizinhos Gilda Abreu e Vicente Celestino, astros do rádio no século 20, aos papos com o amigo Nelson Motta.
Em 1965, a proximidade com a música concedeu-lhe o posto de instrumentista do Grupo Opinião, mítico projeto que utilizava a arte como ferramenta de resistência frente ao recém-instaurado regime militar. O prestígio crescente como intérprete e compositor não impediu que ele fosse vaiado ao defender “Gotham City”, inscrita no Festival Internacional da Canção, em 1969. Ainda assim, o primeiro álbum solo, de 1972, não tardou a chegar, reunindo faixas compostas para colegas como Gal Costa – uma delas, “Hotel das estrelas”.
O êxito do disco de estréia representou, do alto, a trajetória fonográfica irregular de Jards nas décadas seguintes e as brigas que teve com os empresários das gravadoras. A inconstância financeira tratada como “piada” foi a premissa de O Banquete de Mendigos, show público que ele promoveu no Museu de Arte Moderna do Rio em 1973, objetivando arrecadar fundos para ele mesmo. O chiste escondia suas verdadeiras intenções – celebrar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em meio à repressão política no Brasil.
Desde 2015, Jards Macalé vinha trabalhando em registros inéditos como Síntese do Samba, aclamado disco em parceria com João Donato. Semanas antes de seu falecimento, ele promoveu o relançamento do seu primeiro compacto duplo, ironicamente intitulado como Só Morto. Além das faixas “Soluços”, “O crime” e “Sem essa” (regravada anos mais tarde para o LP Contrastes, de 1977), havia a canção-título, com o subtema “Burning night”. “Nessa manhã de louco / Todo mistério é pouco”, resumiu Jards nos versos de “Só morto”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de novembro de 2025.