“Tempos depois, quando se lembrasse do dia em que Adelaide bateu na sua porta, Ramiro teria certeza de que aquele fora o momento mais difícil da sua vida. ‘O senhor pode me arranjar um copo d’água?’, disse a moça, com a firmeza de quem não tem tempo para parecer desamparada”. Todo mundo um dia já teve (ou terá) a sua, mas o escritor pessoense Luis Carlos Venceslau resolveu se debruçar sobre A Primeira Noite de Ramiro e Outros Contos (editora Caravana, 64 páginas), livro que lança amanhã, durante a convenção multicultural Top! Top!, que acontece até o domingo (6), das 14h às 19h, no Espaço Cultural. A entrada do evento é gratuita e a obra custa R$ 45.
A coletânea conta com 34 contos produzidos ao longo de mais de duas décadas. A obra chega ao mercado com a proposta de revelar uma outra dimensão do autor, que embora tenha ficado conhecido por dois romances premiados, iniciou sua trajetória literária abordando diversidade de temas na seara dos contos.
- A obra reúne 34 contos escritos por Luís Carlos Venceslau ao longo de mais de 20 anos | Imagem: Divulgação/Caravana
“O livro é o resultado de anos de produção escrita. Eu tinha — e ainda tenho — um blog, onde publiquei ao longo dos anos muitos desses contos de forma isolada”, afirma o autor. A coletânea reúne textos que estavam espalhados em blogs individuais e coletivos e que, segundo ele, passaram por um processo de seleção criterioso: “Recentemente, depois dos dois romances publicados, eu selecionei o que considerei mais interessante e relevante, e agrupei nesse livro que está sendo lançado agora”.
Dentre as dezenas de textos, três lhe chamam mais a atenção: “Morada”, “A última farra” e o conto que dá título à coletânea — este último por sua estrutura, dada a temporalidade não linear e o artifício de fazer com que o leitor só descubra informações do início da história apenas no final.
“Morada” é o conto de abertura, inspirado no avanço contínuo de uma lagoa sobre residências em Maceió, em 2023, área onde ocorria a extração de sal-gema. “Aquela questão das casas caindo por causa do afundamento do solo me inspirou”, relata. Já “A última farra” tem como pano de fundo a pandemia de Covid-19, contexto que também permeia outras narrativas do livro.
Romancista premiado
Venceslau esclarece que os contos, como movimento natural, vieram primeiro. “Minha escrita começou por esses contos. Só depois de vários anos, por volta de 2017 ou 2018, é que dei uma pausa nos contos e a partir de um certo ponto achei que estava maduro o suficiente para enfrentar a empreitada de fazer um romance”, detalha.
Sua primeira narrativa longa, O Encanto da Pedra, venceu o Prêmio Literário José Lins do Rego na categoria romance, premiação organizada pela Funesc, EPC e Editora A União. Com muitas ideias guardadas, Luis começou a escrever o segundo romance — ainda inédito comercialmente, mas laureado com o mesmo prêmio —, A Vila das Bonecas, entre 2022 e 2023, mas os contos continuaram lá. Só agora o autor decidiu mostrar sua faceta contista.
Luis Carlos considera o segundo romance como o mais desafiador. “Não podia me repetir e ao mesmo tempo precisava ser coerente com minhas ideias e referências, mas sem fazer dele uma mera extensão do primeiro”, comenta. Ao contrário do improviso e espontaneidade que marcaram o primeiro livro, o segundo foi mais refletido e estruturado.
Sobre a relação entre os gêneros, o autor não vê os contos como subgênero ou produção menor. “O conto é um gênero tão forte quanto o romance ou a poesia. Muitos autores ganharam notoriedade apenas escrevendo contos, como Borges, que nunca escreveu um romance”, defende.
Ele também ressalta que parte dos contos de A Primeira Noite de Ramiro conecta-se com o universo criado nos romances. “Existe um diálogo entre as obras. Alguns contos fazem parte desse universo dos romances, com inspiração no realismo mágico e no regionalismo. Mas o livro de contos também traz outros estilos e cenários mais urbanos, realistas e até trágicos”, observa.
Influenciado por autores da literatura mundial como Jorge Luis Borges, Franz Kafka, Júlio Cortázar, além dos brasileiros José Lins do Rego, José Américo de Almeida e Jorge Amado, Luis Carlos Venceslau procura construir uma literatura que combine elementos do realismo mágico com a cultura nordestina. “Gosto muito da definição de Bráulio Tavares, que diz que o Sertão nordestino tem uma mitologia tão forte e poderosa quanto qualquer outra mitologia do mundo, como a mitologia grega ou nórdica. É esse universo que me interessa”, afirma.
Além da literatura, Venceslau tem formação em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), é mestre em Comunicação e atualmente cursa doutorado em Linguística na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “O meu blog surgiu ainda nos tempos da graduação, por volta de 2003 ou 2004. A gente usava como forma de compartilhar textos com os colegas”, recorda. “Com o tempo, fui direcionando mais para a escrita literária — até poemas publiquei por lá”.
Esse início digital permitiu que sua produção fosse escoada e recebesse retorno imediato de leitores e amigos. “Naquela época, publicar algo exigia correr atrás de uma impressão. Com os blogs, a gente já conseguia mostrar o que estava escrevendo”, explica. “Era um espaço de troca e refinamento da escrita”.
Mesmo valorizando o romance, Luis reforça o papel central do conto na história da literatura brasileira. “Nossa tradição de contos é muito forte. Basta lembrar de autores como Machado de Assis, Dalton Trevisan, Guimarães Rosa. Não dá para dizer que são obras menores. São apenas modalidades diferentes da criação literária”, ressalta.
O autor espera que o livro ofereça ao leitor uma experiência literária diversa, capaz de causar a reflexão acerca da multiplicidade das emoções humanas. “Como a vida é diversa, eu tento fazer com que essa literatura também seja diversa. A vida não é só euforia. Também não é só tristeza, raiva ou medo. A ideia é dar um panorama desses sentimentos e tentar traduzir isso na forma dos contos”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 4 de julho de 2025.