Negra, mãe solo, moradora de favela e catadora de papel que virou escritora. Há 65 anos, a dura rotina de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) vinha a lume em uma das obras mais marcantes da literatura feminina brasileira do século XX, o autobiográfico Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada. Para celebrar a data, o Diretório Acadêmico Unificado de Letras Carolina Maria de Jesus (Daule-UFPB) promove hoje, a partir das 7h30, o ciclo de palestras on-line e presencial Entre a Favela e o Papel - 65 Anos de Quarto de Despejo, no campus 1 da UFPB, dedicado a discutir a atualidade do livro e o legado da escritora, com entrada gratuita. As inscrições para o evento (que dá direito a certificado de participação) acontecem pela plataforma da instituição, a SIGEventos.
A doutora Eliane Silva, professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPB, abre os trabalhos às 7h30, no auditório do Centro de Tecnologia (também conhecido como “Bolo de Noiva”). Às 14h30, através da plataforma Google Meet, a filha de Carolina, Vera Eunice de Jesus, compartilha sua história de vida e memórias vinculadas à mãe. E a partir das 18h30, no auditório 411 do CCHLA, Bruna Cassiano, mestra e pesquisadora da obra de Carolina de Jesus, encerra o dia de atividades com a palestra “Quarto de despejo: a atualidade de um Brasil invisível”.
- Em cadernos, encontrados no lixo, Carolina Maria de Jesus registrou sua vida e suas ideias, o que virou um clássico | Foto: Divulgação/Ática
Joabe Macedo, presidente do diretório acadêmico, aponta que o objetivo das palestras é resgatar o impacto social e literário de Carolina de Jesus. “Ela transformou a experiência de vida em denúncia social. Sua escrita segue inspirando lutas e reflexões sobre gênero, raça e classe, além de dialogar com a realidade brasileira até hoje”, afirma.
Diários da história
A obra sexagenária articula experiência social e registros rotineiros escritos em meados de 1955 e o início de 1960, período em que a autora mineira (nascida em Sacramento) viveu na Favela do Canindé, comunidade pobre da Zona Norte de São Paulo que foi desocupada na década de 1960 para a construção da Marginal Tietê, e sentiu na pele as tormentas da violência, da miséria e da fome.
Vista de dentro, a favela é descortinada em linguagem coloquial, por vezes contrária à norma culta da língua – os diários de observação de Carolina foram depostos à letra em dezenas de cadernos por ela recolhidos do lixo – o que foi preservado como um marcador identitário da obra. Afinal, em sua precária condição, a autora só conseguiu cursar dois anos de estudo formal, mas em matéria de diagnóstico empírico da realidade de seu tempo, mostrou-se das mais eloquentes narradoras das relações étnicas e da desumana situação de vida de catadores e moradores da favela, drama tristemente reeditado pelas desigualdades sociais até os dias de hoje.
Quem primeiro “descobriu” os escritos de Carolina de Jesus foi o jornalista Audálio Dantas (1929-2018), em reportagem publicada na Folha da Noite, em 1958. O encontro rendeu matéria, no ano seguinte, para a revista O Cruzeiro, vindo a tornar-se livro em 1960, a despeito da relutância das editoras em publicá-lo.
Quarto de Despejo é best-seller traduzido em pelo menos 13 línguas e se tornou um dos livros brasileiros mais conhecidos no exterior, mas não ficou restrito às páginas impressas. Em 1961, ganhou uma adaptação para teatro por Edy Lima (com direção de Amir Haddad e Ruth de Souza no papel principal) e um LP de 12 faixas, Quarto de Despejo - Carolina Maria de Jesus Cantando suas Composições; em 1971, virou o documentário alemão Favela - A Vida na Pobreza (16 min.), dirigido por Christa Gottmann-Elter e impedido de passar no Brasil à época por ocasião da Ditadura Militar, além de um especial da Rede Globo, em 1983.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de agosto de 2025.