Em 2022, uma eleição da revista britânica Sight & Sound, com críticos de todo o mundo, alçou o quase desconhecido Jeanne Dielman, 23, Quai do Commerce, 1080 Bruxelles (ou apenas Jeanne Dielman), de 1975, à posição de melhor filme de todos os tempos. O longa da diretora belga Chantal Akerman marca a primeira vez em que um filme dirigido por uma mulher consta no topo desse ranking. O público de João Pessoa poderá tirar suas próprias conclusões sobre essa escolha com a estreia da obra hoje, às 15h30, no Cine Bangüê do Espaço Cultural (Tambauzinho). Os ingressos custam de R$ 5 (meia) a R$ 10 (inteira).
Em Jeanne Dielman, falado em francês, acompanhamos, por mais de três horas de projeção, a vida aparentemente banal da dona de casa que dá nome ao filme (papel da atriz francesa Delphine Seyrig). Durante três dias, a mulher vive um cotidiano similar, começando por escovar os sapatos e preparar o desejum do filho único, o apático Sylvain (Jan Decorte). Essa realidade muda com a ida do estudante para a escola: concluídos os afazeres domésticos, Jeanne passa a receber homens em casa para encontros sexuais, sendo paga por eles. A “programação normal” volta com a partida dos homens e o posterior retorno de Sylvain para o jantar e uma última conversa noturna com a mãe. O rapaz não sabe que ela se prostitui.
Os planos longos dirigidos por Akerman (alguns com cinco, seis minutos de duração) ajudam a construir esse retrato repetitivo e quase sempre comum da protagonista, mas optam por esconder, justamente, o contato de Jeanne com seus clientes, retratado apenas pelo ato de entrar e sair do quarto (num corte seco, que representa a passagem de tempo). A partir do segundo dia, começamos a ver pequenos sinais que indicam o paulatino, mas silencioso esgotamento daquela mulher — as batatas que ela esquece cozinhando no fogão; a desatenção ao tentar escrever, como de costume; e mesmo o seu robe, antes impecavelmente fechado, agora desabotoado, que engalha numa cadeira.
O acúmulo de tensões é acentuado por fatores externos. Uma vizinha inconveniente bate à sua porta para contar-lhe, inadvertidamente, sobre seus contratempos familiares (a personagem aparece apenas por voz off lacônica de Akerman); o filho faz um comentário indireto, mas perturbador, sobre a vida sexual de sua mãe e de seu pai.
No terceiro dia, os problemas que a dona de casa mantém internalizados tornam-se mais visíveis e palpáveis — o sapato de Sylvain escapa de suas mãos após uma escovada ríspida; a garrafa de leite por pouco não entorna após um esbarrão, em meio ao preparo do jantar. Esse estresse não-remediado culmina numa tragédia, no último encontro de Jeanne com seu cliente.
Subida rumo ao topo
Depois de atuar e dirigir em curtas-metragens experimentais, Chantal Akerman fez uma estréia auspiciosa num registro mais extenso com Eu, Tu, Ele, Ela, que chegou aos cinemas europeus em 1974. Mediante o respaldo da crítica e o anseio de produzir um longa- -metragem com um orçamento maior, a realizadora apresentou seu novo projeto ao governo belga e solicitou uma bolsa de fomento.
O recurso foi garantido, mas Akerman decidiu alterar o roteiro proposto inicialmente e escreveu o que viria a ser a trama de Jeanne Dielman, rodado por uma equipe quase que inteiramente feminina. Convidou para o papel-título Delphine Seyrig, atriz de sucesso em filmes como O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais, 1961).
O filme estreou numa mostra secundária do Festival de Cannes, em 1975. A recepção foi disputada, como seria a trajetória do projeto nos anos seguintes; enquanto um grupo de especialistas tratava como demérito os planos longos e propositalmente entediantes de Akerman, outros aclamavam a realização incomum e feminina da cineasta, então com 25 anos.
Ela colheu os louros dessa visibilidade. Meses depois, o jornal Le Monde chamou Jeanne Dielman de “a primeira obra-prima do feminino na história do cinema”. Os filmes de Akerman ainda passaram a circular com mais frequência em mostras audiovisuais europeias: Toda uma Noite (1982) e Dia e Noite (1991), ambos parte do Festival de Berlim. Akerman faleceu em 2015, pouco depois de finalizar Não É um Filme Caseiro, seu último longa. Nesse documentário, ela registra conversas com sua mãe, Natalia, sobrevivente do Holocausto.
A Sight & Sound, vinculada ao Instituto de Cinema Britânico (BFI), atualiza a lista de melhores filmes da história de década em década, desde 1952. Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, figurou em primeiro de 1962 a 2002 (atualmente está em terceiro). Em 2012, Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock, assumiu o posto (agora é o segundo).
Jeanne Dielman figurou pela primeira vez entre os 100 melhores na lista de 2002, em 73o. Dez anos depois, angariou o 36o. No salto para o topo, o filme amealhou 215 votos, sete a mais que o segundo colocado, Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock. Na votação feita com diretores de filmes, Jeanne Dielman figurou em quarto lugar; 2001 lidera esse outro ranking.
O anúncio da BFI, de 2022, asseverava que essa foi a primeira vez, em nove décadas, que uma mulher constou no topo das escolhas da Sight & Sound. O texto trazia comentários justificados de especialistas, como pesquisadora Laura Mulvey, que elevou o tom do discurso: “Pode-se dizer que houve um antes e um depois de Jeanne Dielman, assim como houve um antes e um depois de Cidadão Kane”.
Dessa escolha surpreendente e nada unânime, emerge um dado incontestável — a circulação diminuta do filme em cinemas fora da Europa, sobretudo nas Américas. Em pesquisas nos jornais brasileiros, os primeiros registros de sessões da assim chamada "obra-prima de Chantal Akerman" datam dos anos 2000, em festivais e mostras.
Em cartaz no circuito, cobrando ingressos, esta é provavelmente a estreia do filme nos cinemas brasileiros (ele já estava disponível em streaming, na Filmicca, que também é a distribuidora do filme nos cinemas.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de dezembro de 2025.