Aos 17 anos, Henrique Magalhães nem poderia imaginar, mas a personagem em quadrinhos que acabara de criar permaneceria ao seu lado por mais cinco décadas. Nesse tempo, Maria angariou tintas políticas e novos contornos — inclusive, literalmente, com o aprimoramento do traço do autor. Ela foi eleita, ano passado, patrimônio imaterial da Paraíba e ganha, nesta semana, uma nova coletânea: Maria – 50 Anos de Humor e Provocação (Ed. A União), será lançada quarta-feria (23), a partir das 19h, na Livraria A União, no Espaço Cultural, em João Pessoa. A entrada é franca.
Com 102 páginas, o livro reúne tiras e histórias mais longas, sendo possível conferir a evolução da personagem e as discussões profundas (e cômicas) que ela travou com as companheiras fiéis, Pombinha e Zefinha. A apresentação, no evento, será com as pesquisadoras Nadja Carvalho e Regina Behar, e com a ilustradora Thaïs Gualberto.
O livro está dividido em quatro segmentos, conforme as “fases temáticas” que Maria teve nesses 50 anos de publicações no Brasil e em Portugal (quatro coletâneas foram editadas por lá): “Rebeldia e luta”; “Outras perspectivas”; “Novos horizontes”; e “Provocações poéticas”. A apresentação do livro é do próprio autor, com um prefácio do dramaturgo e escritor Paulo Vieira de Melo. “É um texto muito emocional e muito pessoal até, porque Paulo me acompanha desde o início da produção”, ratifica o autor.
O projeto ganhou corpo graças a um desejo em comum de Henrique e da EPC. O “nascimento” de Maria deu-se no extinto Jornal O Norte, mas a tira foi vista com mais frequência, a partir de 1975, em A União e em O Pirralho, suplemento infantil do jornal.
“É como se Maria voltasse para casa. Naquela época, eu ainda estava no Ensino Médio. Com ela, quis trabalhar a visão da mulher na sociedade, porque, a partir das minhas leituras dos quadrinhos, percebi que elas estavam sempre em segundo plano, como coadjuvante do herói”, rememora.
Com o ingresso nos cursos de Arquitetura e de Comunicação Social da UFPB, o quadrinista estreitou laços com os movimentos estudantis e artísticos da capital. Essa empreitada fez com que as aventuras amorosas de Maria, tema frequente de suas tirinhas, abrissem espaço para a política, como reflexo do momento histórico em que vivia.
“Foi um choque de consciência que levou a personagem a fazer um discurso muito mais amplo. Ela passou também a ser uma crítica da sociedade, contra a Ditadura”, atesta.
Apesar da ousadia, Henrique afirma que não era vítima de cerceamento por parte de militares. Mas ele assinala que, nos veículos locais, havia, com frequência, gestos de autocensura. “Só teve um problema sério com as tiras que eu fiz sobre o episódio na comunidade de Alagamar (no município de Salgado de São Félix, Agreste paraibano). Por lá, nos anos 1980, houve um conflito de terras, tema tabu dentro do jornalismo, porque mexia com a estrutura local”, lembra.
“É a minha voz”
A capilaridade de Maria e de outros personagens paraibanos nos veículos da época foi beneficiada, nos anos 1970, pela chegada da impressão off-set, que substituiu os antigos métodos tipográficos, com uso de placas de metal mais pesadas e mais rústicas. “A gente tinha pessoas-chave dentro de jornais, como Deodato Borges, pai de Mike Deodato, diretor de arte em O Norte, e Antônio Barreto Neto, em A União, que eram apaixonados por quadrinhos. Eles abriram as portas para uma geração inteira de quadrinistas”, alega.
A proximidade do artista com grupos LGBTQIAPNb+ do estado garantiu a Maria tintas ainda mais coloridas: ela assumiu seu amor pela sua companheira Pombinha. Henrique sustenta que nunca foi cobrado por ser “a voz” por trás de uma personagem feminina e estar “fora de seu local de fala”.
“As tirinhas estavam integradas aos movimentos negro, gay, de mulheres, as minorias sociais, então nunca houve nenhum tipo de contestação, pelo contrário, ela sempre muito bem acolhida”, comemora.
Essa aceitação também é vista, segundo Henrique Magalhães, entre as gerações mais novas. Ele cita o curta-metragem documental Maria por Marias, desenvolvido, há alguns anos por Karla Karini, então aluna do curso de Comunicação e Mídias Digitais da UFPB. “O filme está disponível no YouTube e mostra, mulheres jovens, garotas, dizendo que adoram a personagem por causa do discurso dela. Então, imagine que Maria era importante naquele início, por representar lutas políticas, mas que segue representando o universo feminino”, aponta.
Também nos anos 1980, Magalhães passou a atuar como realizador audiovisual, integrando um grupo que abarcava nomes como Bertrand Lira, Torquato Joel e Marcus Villar. O artista também fez parte da chamada “onda queer do cinema paraibano”, graças a seu trabalho em filmes como Era Vermelho o Seu Batom (1981). “Cheguei a fazer uma tira animada de Maria, com um minuto de duração. Como não tinha acetato, elaborei tudo com papel sulfite em A4. Demorei seis meses para fazer, foi uma loucura”, informa.
Apesar do curta, que pode ser conferido no YouTube, o desenhista certifica que nunca cogitou fazer um filme live action de Maria, ou seja: com atores reais. Ele teme ver sua criação a partir de uma imagem muito determinada e reduzida — algo que não aconteceria com as tirinhas.
“Maria é muito meu pensamento, ela é muito personalizada no meu traço e não consigo enxergar alguém que a encarnasse, fisicamente. Ao mesmo tempo, no desenho, Maria pode ser qualquer mulher ou todas as mulheres”, justifica.
Henrique Magalhães está aposentado como professor da UFPB, mas continua trabalhando na Marca de Fantasia, projeto em que realiza a edição de livros digitais. Ele confidencia que já pensou em dar um “descanso” a Maria, mas que desistiu todas as vezes. “Outros autores que eu admiro muito, como Quino (de Mafalda) e o Bill Watterson (de Calvin e Haroldo) pararam cedo. Mas eu não consigo. Ela é a minha voz. E acho que só vai ter fim quando eu tiver fim também”, conclui.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de julho de 2025.