“Um jeitinho brasileiro. E para te salvar do Brasil”. A fala que Marcelo (Wagner Moura) ouve de Elza (Maria Fernanda Cândido) resume a jornada sanguinolenta que o protagonista de O Agente Secreto percorre na tentativa de escapar de seu passado, porém restaurando parte de suas memórias. O novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho adiciona a essa jornada a sua tradicional colagem de gêneros cinematográficos e uma boa dose de referências pernambucanas — mistura que pode levar o Brasil ao Oscar, pelo segundo ano consecutivo. O filme estreia hoje nos cinemas, com sessões confirmadas nas cidades de João Pessoa, Campina Grande, Guarabira e Patos (ver salas e horários na página 12).
Em São Paulo, nos idos de 1970, Marcelo e sua esposa Fátima (Alice Carvalho) são vítimas de uma conspiração que custa a liberdade dele e a vida dela. O agora ex- -professor retorna incógnito ao Recife, sua terra natal, e é recepcionado por Sebastiana (Tânia Maria), que lidera um grupo de refugiados, brasileiros e estrangeiros, ajudando-os a encontrar novos rumos.
Ele reencontra o sogro, Alexandre (Carlos Francisco) e o filho, que pretende levar consigo para fora do país. A rede de auxílio a Marcelo amplia-se com as presenças de Anísio (Buda Lira), que coordena um instituto de polícia científica, e Elza, que lhe oferece a possibilidade de escapar, munido de documentos falsos.
Enquanto ele tenta manter as aparências, seus inimigos, na capital paulista, planejam uma inesperada revanche. Os misteriosos Augusto e Bobbi (Roney Vilela e Gabriel Leone, respectivamente) descobrem o paradeiro do protagonista, que corre contra o tempo para salvar a própria pele. O Agente Secreto é ambientado num período de efervescência cultural na região, materializado no carnaval, retratado por Mendonça Filho nos blocos de rua e nas alas ursas, que animam habitantes locais e turistas, de maneira muito similar, há muitas décadas. A Ditadura Militar também é tematizada no filme, ainda que de forma difusa e com um impacto menor em relação às tramas principais.
A trilha sonora original, assinada por Mateus Alves e Tomaz Alves Souza, acaba sendo suplantada pelas faixas que alimentam um painel regional e setentista. A “salada” musical inclui as internacionais “If you leave me now”, do grupo Chicago, e “Love to love you, baby”, de Donna Summer, bem como duas faixas do mítico álbum Paêbirú, de Zé Ramalho e Lula Cortes, “Harpa dos Ares — Ar” e o pot-pourri “Trilha de Sumé”. Waldick Soriano e Ângela Maria, ícones do rádio no século 20, estão presentes com dois sucessos — “Eu não sou cachorro, não” e “Não há mais tempo”. “Guerra e pace, pollo e brace”, composta por Ennio Morricone para o filme Desejo Perverso (ou Obrigado, Tia, de 1968) também ganha espaço.
O cinema, a propósito, ganha referências imagéticas diretas ou indiretas ao longo da projeção. A Profecia (em sua versão original, de Richard Donner, de 1976) é exibido antes de uma cena chave para os personagens principais — com direito a uma suposta “possessão” na platéia.
Outro clássico do horror, Tubarão (de Steven Spielberg, lançado em 1975), é mencionado com frequência pelo filho de Marcelo e por seu sogro, que trabalha como projecionista do imponente Cine São Luiz, que resiste, até os dias atuais, no Recife. O sangue presente nesses e em outros títulos aparece como elemento simbólico ou literal para Kleber, que incorpora, ainda, alusões a telenovelas e outros programas de TV.
O Agente Secreto conta com sequências que funcionam quase que de forma independente em relação ao resto do filme. A cena de abertura — cujos trechos foram os primeiros a vir a público, em maio — mostram Marcelo sendo “recepcionado” por um cadáver, que apodrece em frente a um posto de gasolina, onde o herói estaciona para abastecer.
A segunda, no meio do filme, ficcionaliza uma lenda famosa em Pernambuco e que mantém uma conexão estreita e curiosa com outro momento do longa — a Perna Cabeluda, membro amputado que tem vida própria e vaga pelas noites recifenses agredindo incautos. Esta outra sequência tem fotografia e montagem próximas dos filmes de terror da década de 1970.
A equipe de A União assistiu O Agente Secreto em uma pré-estreia na última segunda-feira (3), em João Pessoa: o evento, produzido pela Vitrine Filmes, no Centerplex do MAG Shopping, contou com o apoio da Parahyba FM 103.9. Parte do elenco paraibano do longa bateu ponto lá: Beto Quirino, Buda Lira, Cely Farias, Fafá Dantas, Flávio Melo, Joálisson Cunha e Márcio de Paula. Suzy Lopes, que também integra esta turma, não pôde estar presente.
Joálisson definiu a nova aventura de Kléber como um longa “anárquico”. “Ele faz a gente rir da tragédia que é a realidade e de um período tão duro. Não tem obrigação total com a realidade, mas tem obrigação de lembrar-nos do sentimento que essas pessoas viveram e que a gente pode reviver a qualquer momento, com esse conservadorismo safado”, conclui o ator.
Um painel disperso sobre memórias rejeitadas
Por Renato Félix
Mais do que contar uma história direta, O Agente Secreto quer mesmo é fazer um grande painel do Recife dos anos 1970, tão abrangente que não se aprofunda para valer em nenhum deles. A jornada do protagonista amarra elementos contrastantes como a ameaça que a Ditadura representa e a válvula de escape que o carnaval simboliza. No delegado bonachão que aparece de bermuda e confetes pelo corpo para investigar um chamado convergem os dois polos.
Mas o filme decide seguir pelas beiradas, colocando aos poucos na tela as peças do quebra-cabeças do protagonista. A trama, supostamente central, vai perdendo espaço para essa memória da cidade nos anos 1970, com sua atmosfera caótica e a opressão da Ditadura à espreita.
Memórias que, em certo ponto, parece que ninguém quer ter: pessoas ou instituições. À parte essa discussão, o filme vai frustrar quem se deixar levar pelo cartaz de faroeste italiano, Ennio Morricone na trilha e título, tudo evocativo de um certo cinema de ação. Nesse ponto, o filme, bastante disperso em seus tantos e situações, é uma brasa que raramente pega fogo.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 6 de novembro de 2025.