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Solha reencontra Shakespeare

publicado: 15/07/2025 08h58, última modificação: 15/07/2025 08h58
Escritor aborda o maior clássico do bardo em seu novo livro: “A Angústia de Hamlet Segundo Seu Amigo Horácio, Paraibano”
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Solha abordou a obra de Shakespeare não só nos livros: um painel pintado por ele está exposto na Reitoria da UFPB | Foto: Edson Matos/Arquivo A União

por Esmejoano Lincol*

Se algum dia em teu peito me abrigaste, priva-te por um tempo da ventura e respira cansado mais um pouco neste mundo tão duro, para a todos contar a minha história”, suplica o moribundo Hamlet, numa das últimas cenas da peça que leva o seu nome, escrita há mais de 400 anos pelo inglês William Shakespeare. Coube a um paulista radicado na Paraíba atender a esse derradeiro pedido e transferir, como autor, o foco da narrativa para um personagem secundário: a releitura A Angústia de Hamlet, Segundo Seu Amigo Horácio, Paraibano (Arribaçã, 204 páginas, R$ 60), de W. J. Solha.

O texto que surge agora como obra independente está presente em outro livro de Solha, História Universal da Angústia, lançado há 20 anos. Intitulado apenas como “A angústia de Hamlet”, este é o último capítulo de uma série de sete segmentos em que ele adapta narrativas conhecidas da humanidade e seus heróis marcados por sofrimentos, como os reis Saul e Édipo.

“Shakespeare já rendeu e vai render muito mais”, diz Solha sobre possíveis futuras releituras da obra do bardo | Foto: Reprodução/National Gallery

O escritor dá voz e onisciência a Horácio, personagem que, no original, testemunha os últimos momentos de vida do amigo Hamlet. Nessa nova versão ele torna-se paraibano e tem acesso a elementos do presente extraficcional.

“As coisas não mudaram tanto nesses quatro séculos. A colher de pau da ‘Velha fritando ovos’, de Velázquez, é igualzinha às que ainda há na cozinha de minha casa, e também o cesto suspenso na parede, a jarra de louça, a velha empregada... e os ovos! Certo: Kaiser, agora é marca de cerveja, mas aí estão, ainda, navios nos cais, moinhos da Holanda, o papa em Roma e o Kongeriget Danmark — o Reino da Dinamarca — permanecendo no mundo como a fome, estupros, a corrupção, a miséria, a angústia... e a morte, evidentemente”, evoca o Horácio de Solha. 

Linaldo Guedes, à frente da Arribaçã, foi responsável, junto com Lenilson Oliveira, pela revisão do texto, transposto na íntegra para este projeto independente. “Eu achei uma ideia espetacular, porque se torna um livro curioso, instigante e original. Num dos principais episódios de Hamlet, estaria um paraibano que seria seu amigo. Algo inusitado que apenas Solha poderia fazer”, sustenta.

Como espécie de apresentação do livro, foi adicionada uma crítica do jornalista mineiro Hugo Almeida, publicada há alguns anos. Foi Almeida, inclusive, quem sugeriu o lançamento isolado.

A Angústia de Hamlet foi dividido e capitulado conforme as indicações de Solha, que lançou outros quatro livros pela Arribaçã. “Estamos indo para mais um, o novo livro de poemas dele. Ele é um autor que sempre nos surpreende. Pela sua capacidade, pela sua inventividade, isso tem que ficar registrado”, antecipa Linaldo.

Hamlet em José Américo

Solha recorda que leu Shakespeare, de soslaio, quando já residia na Paraíba, em Pombal, Sertão do estado. Recém-empossado como bancário e sem acesso a bibliotecas ou livrarias, trocou com um colega seus livros de contabilidade por uma vultosa edição da Bíblia.

“[Depois] veio a leitura de toda a obra de Platão. E, assim, veio a leitura da Ilíada e Odisseia — e do teatro grego, Freud afirmando, em A Interpretação dos Sonhos, que as duas peças mais montadas no mundo sempre foram Édipo Rei e Hamlet — que eu já conhecia pela versão de Laurence Olivier para o cinema”, rememora.

Impulsionado pela impressão do pai da Psicanálise, foi atrás do texto original em inglês, numa leitura compartilhada com duas traduções em nosso idioma e as análises literárias combinadas de Jan Kott, Harold Bloom e Park Honan. Toda essa digressão foi usada, décadas mais tarde, como fonte para o que escreveu em A Angústia.

“Aí aconteceu de participar do elenco do filme Soledade (1976, baseado em A Bagaceira, de José Américo de Almeida)  e entrever ali algo do Hamlet, donde o meu livro Zé Américo Foi Princeso no Trono da Monarquia, lançado em 1984”, sustenta.

A deixa para a contar essa história sob nova perspectiva deu-se, justamente, a partir da cena da abertura desse texto: Hamlet, agonizando, dissuade Horácio de cometer suicídio.

“Como me intrigava aquele nome nada nórdico e como Shakespeare chegou a Londres no mesmo ano da fundação da Filipéia de Nossa Senhora das Neves, pensei: ‘Por que Horácio não seria filho de um português traficante de pau-brasil querendo alguém seu em meio a príncipes de várias cortes européias, interessadas na tintura nacional daqueles soberbos mantos vermelhos?’”, aponta.

A capa do livro inclui uma imagem do ator inglês Derek Jacobi como Hamlet na adaptação televisiva, pela BBC de Londres, em 1978, e uma foto do próprio Solha, jovem, atuando no filme O Salário da Morte (1971), de Linduarte Noronha, o primeiro longa paraibano de ficção. Por coincidência, o nome do papel dele era Horácio, mas, sem relação com o tipo shakespeareano. 

Foto: Divulgação/Arribaçã

“Eu quis dar a entender que o Horácio do romance sou eu, escrevendo hoje, com a mesma ‘eternidade’ do Orlando de Virgínia Woolf”, justifica.

Questionado sobre a possibilidade de desenvolver outras releituras, paráfrases ou adaptações das peças de Shakespeare, Solha declara que as chances para intenções similares, por parte dele e de outros escritores, são infinitas, dada a extensão da obra daquele que é chamado de “bardo de Avon”.

“Tanto que passei nove meses trabalhando no painel-homenagem a Shakespeare, do auditório da reitoria da Universidade Federal da Paraíba, enorme retângulo composto de 36 telas, cada uma alusiva a uma de suas criações. Ele já rendeu e ainda vai render muito mais”, conclui.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de julho de 2025.