Heráclito de Éfeso imortalizou uma frase conhecida sobre inconstância: “Ninguém entra duas vezes no mesmo rio”. A cada ida, tanto o homem quanto o curso fluvial mudam, evoluem. “Se eu desse essa mesma entrevista para você daqui a meia hora, eu teria outras respostas”, revela o ator Michel Melamed para A União. Ele utiliza a máxima que o filósofo grego propôs há 25 séculos para definir o conceito que pauta o caótico, mas ordenado, Polipolar Show, novo programa que o artista estreia hoje, às 21h, no Canal Brasil. A atração é uma versão “turbinada” do Bipolar Show, que Michel apresentou até 2018. Participam do primeiro episódio a atriz Regina Casé, a cantora MC Carol e o escritor Jeferson Tenório.
O roteiro do Polipolar segue estrutura similar ao do projeto anterior – nem o apresentador, nem os convidados recebem pautas prévias. A conversa e as performances fluem por temas e caminhos inusitados – na segunda temporada, por exemplo, Eduardo Sterblitch “trancava-se” numa cela de vidro enquanto improvisava caretas, sob os risos da platéia. Já Selton Mello propôs um cover da música “P da vida”, do Dominó.
No Bipolar Show, o cenário mudava – inicialmente, essa alteração era mais simples, com estruturas montadas lado a lado. Na última temporada, os participantes também alternavam de local – entre o Cassino da Urca e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na capital fluminense.
Agora, com três convidados, as trocas são ainda mais complexas – cada um deles muda de ambiente e de figurino outras três vezes, perfazendo nove combinações a cada programa. Para tornar possível essa “insanidade”, nas palavras de Michel, foram montados 20 cenários fixos em um estúdio de mil metros quadrados no Rio de Janeiro.
“Na hipótese de haver uma nova temporada, o método de gravação precisará ser diferente, porque foi realmente excruciante. Mas o maior desafio é estar presente, ali. Não à toa esse é um tema bem contemporâneo. Porque as pessoas estão aqui, mas a cabeça está em 30 mil coisas ao mesmo tempo. Poderia ser um papo com uma pessoa apenas e ela estar ausente”, sustenta.
Menos misantropo
A troca dos ambientes não é apenas uma escolha estética, segundo Michel, mas um convite à improvisação. O apresentador recorre a essa ideia de fragmentar as conversas e dispô-las de forma “viva”, tanto no cenário quanto na edição desde o seu primeiro programa – Recorte, exibido pela TV Brasil entre 2005 e 2008.
“Na época do Bipolar houve outras circunstâncias que contribuíram, como a ideia da polarização que tem perpassado a gente nesses últimos anos. E o conceito da bipolaridade per se, já que tenho casos desse transtorno na minha família. Mas, principalmente, havia essa vontade de experienciar um novo encontro com a mesma pessoa: eu e ela sermos outros”, atesta.
A escolha dos convidados (30, nesta temporada com 10 episódios) é feita pelo próprio Michel, a partir da admiração pessoal que nutre por eles: “Não vou dar voz para fascista, a ‘polipolaridade’ tem o limite da sanidade mental e do amor”. Diz também que todos surpreenderam positivamente e que embarcaram no papo e nas brincadeiras propostas:
“As pessoas chegam ali com suas histórias preparadas pela vida e com seu estado de espírito daquele dia. Eu não sei o que vai acontecer, eu sento ali e o negócio começa a desdobrar. Tem uma hora que eu dou aquela olhada de fora pra dizer, ‘Peraí, como é que esse negócio está indo?’. E eu sempre eu me encanto”, afirma.
O Michel Melamed que banhou-se na última temporada do Bipolar Show também não é o mesmo de agora. De lá para cá o ator casou-se (com a atriz Letícia Colin), teve um filho (Uri, hoje com cinco anos) e separou-se (no final do ano passado). Ele também tinha decidido não mais apresentar programas, cuidando apenas do roteiro e da direção dos seus projetos – a resolução foi repensada quando o Canal Brasil sugeriu o Polipolar.
“Saí desse projeto com muitos aprendizados. E eu gosto muito dessa persona que o programa requer de mim, porque, via de regra, no meu cotidiano, eu sou uma pessoa mais misantropa. O programa exige que eu bote energia e que, principalmente, eu esteja mais aberto às pessoas”, pondera.
Abismos paraibanos
Poeta desde a adolescência, Michel começou a tornar públicos seus textos em saraus promovidos durante o CEP 20.000, evento literário que acontece há mais de três décadas no Rio. Logo partiu para projetos solo no teatro, com o Regurgitofagia. E rumou, depois, para iniciativas autorais e não-autorais na TV.
“Acho que ainda não me consolidei como artista, porque, na minha perspectiva, ser artista é um processo diário de consolidação, desconsolidação. É um cabo de guerra consigo mesmo o tempo todo. Tudo isso sempre partiu da minha expressão de um texto ou visão de cena. Fazer trabalhos de outros se tornou uma novidade na minha vida e continua sendo”, alega.
A relação de Michel com a Paraíba é antiga. Em 2006, ele interpretou o poeta Augusto dos Anjos no longa-metragem Brasília 18%, de Nelson Pereira dos Santos. Quatro anos antes, dividiu os palcos com os atores do Grupo Piollin durante temporada do espetáculo Woyzeck, o Brasileiro, sob a batuta de Matheus Nachtergaele. Na ocasião, estreitou laços com Everaldo Pontes, Marcélia Cartaxo e os irmãos Buda, Nanego e Soia Lira.
“Foi um desses momentos que eu falei, ‘Opa, tem um outro jeito de fazer que não é o meu texto, que não é a minha direção’. Todos eles são artistas deslumbrantes de quem sou tributário. São pessoas que se debruçam sobre seus próprios abismos e os abismos do país”, define.
Além do exercício como apresentador, roteirista e diretor na televisão, integrou os elencos da minissérie Capitu, como o Dom Casmurro, de Machado de Assis, e da novela Além do Tempo, interpretando o anjo Ariel. Ele afirma que a escolha por esses ou outros ofícios no audiovisual sempre depende de uma confluência de fatores, mas que desaguam num anseio em comum: o de contribuir para a linguagem contemporânea da arte.
“Muitas vezes você fala ‘sim’ para um trabalho e aquele trabalho pode ser ou pode não ser. Mas ele é que vai te levar para outro negócio lá na frente. Hoje eu acho que dizer ‘sim’ é mais salutar do que se poupar muito”, conclui.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de maio de 2025.