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Uma fera do cartum

publicado: 26/08/2025 08h29, última modificação: 26/08/2025 08h29
Jaguar, que morreu domingo, marcou a arte gráfica brasileira com seu traço forte e irreverente e pelo revolucionário jornal que ajudou a fundar: "O Pasquim"
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Autorretrato de Jaguar em uma de suas cenas mais recorrentes | Imagem: Jaguar/Reprodução

por Renato Félix*

Jaguar vem — quem diria? — de Jaguaribe. Mas não o bairro pessoense, e, sim, do sobrenome: Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe. Foi com esse nome artístico que ele se tornou uma fera do cartum brasileiro, além de ter sido um dos fundadores do histórico O Pasquim, o “jornal de jornalistas” que exalava liberdade em plenos anos de chumbo da Ditadura Militar. Sua importância e talento foram lembrados por muitos colegas e admiradores desde domingo (24), quando morreu, aos 93 anos. 

Foto: Agência Brasil

José Alberto Lovetro, o Jal, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, tinha entre 13 e 14 anos e trabalhava como office-boy quando conheceu a obra de Jaguar, em O Pasquim. “Eu trabalhava em uma empresa em que cada um no departamento dava um pouco de grana para comprarmos O Pasquim”, lembra. “Foi aí que conheci o Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Henfil, e minha vida mudou”.

Jal conta que começou a entender ali o Brasil da época. “Cada um de nós, desenhistas que lemos O Pasquim, entramos nesse processo para valer”, conta. “Em 1996, o Jaguar resolveu fazer os Pasquins regionais. Foi quando me convidaram pra ser o editor de humor do Pasquim SP. Então, realizei meu maior sonho porque, além de trabalhar no jornal que fez minha cabeça, era eu o autorizado pelo Jaguar para criar textos e desenhar o Sig, seu personagem”.

O Pasquim era um jornal recheado de cartuns e Jaguar, fundador do semanário junto com Sérgio Cabral, Tarso de Castro, Claudius e Prósperi, era não apenas uma das estrelas da companhia como era dele o mascote do jornal, o rato Sig. Seu traço, rude, era uma característica forte.

“Seu traço caricatural era muito bom e o humor escrachado e crítico, avassalador”, opina o quadrinhista Henrique Magalhães, criador de Maria. “Certa vez, encontrei-o no Festival de Areia, creio que no final dos anos 1970, mas não tive contato direto. Admirava seu trabalho no Pasquim, que lia sempre que possível”.

O cartunista William Medeiros também chegou a conhecer Jaguar. “Eu o conheci em 1985, no Salão de Humor do Piauí, quando eu ainda engatinhava no desenho de humor”, recorda. “Em 2001, o levamos para Campina Grande para ser jurado no Salão de Humor de Campina Grande. Lá, tive a oportunidade de mostrar para ele o meu trabalho e receber elogios e sugestões de como melhorar o meu traço e humor. Meses depois desse encontro, ele me presenteou com uma página inteira de desenhos meus no Pasquim”.

“O Jaguar foi uma dessas figuras que parecem maiores que a própria vida, né? Sempre admirei a coragem e a malícia dele no traço — simples à primeira vista, mas cheio de veneno, cheio de inteligência”, diz Mike Deodato. “Ele tinha aquela capacidade rara de dizer muito com pouco, cutucando onde mais doía, mas sempre com humor. Era um desses caras que abriram caminho, que mostraram que cartum podia ser arma e poesia ao mesmo tempo”.

William concorda. “Ele tinha um traço simples, mas pesado, e que carregava um expressividade pouco vista no desenho de humor gráfico”, afirma. “Ele conseguia transmitir seu jeito moleque e sarcástico com muita inteligência e humor através dos seus desenhos. Tinha um estilo único, pessoal e marcante. Só Jaguar desenhava e fazia charges como o Jaguar”.

“Átila, Você É Bárbaro” foi o primeiro livro lançado por Jaguar, em 1968, antes ainda de “O Pasquim”, em 1969 |Foto: Sesi-SP/Divulgação

Jaguar nasceu no Rio de Janeiro, em 1932, e desenhava desde criança: em um dos colégios de que foi expulso, o motivo virou uma história em quadrinhos pornográfica estrelada pelos padres que comandavam a instituição, como conta Ruy Castro no perfil do cartunista, no livro Ela É Carioca – Uma Enciclopédia de Ipanema. Depois de desistir de ser poeta, começou a carreira profissional como desenhista aos 20 anos, em O Semanário.

Passou pelas revistas Manchete (em que Sérgio Jaguaribe virou Jaguar, por sugestão do colega Borjalo) e Senhor, antes de se juntar aos comparsas para a fundação de um jornal que misturava rebeldia e humor, e isso seis meses depois da implantação do AI-5, ato que endurecia ainda mais a Ditadura Militar. Apesar (ou por causa) disso, em 1969, nascia O Pasquim.

“Se esta revista for independente, não dura três meses. Se durar três meses, não é independente”, escreveu Millôr Fernandes no editorial do primeiro número, avisando a Jaguar no final. “Não esqueça do que eu te disse: nós, humoristas, temos bastante importância para ser presos e nenhuma para ser soltos”.

A primeira previsão errou: O Pasquim (depois, só Pasquim) durou 22 anos, até 1991, com Jaguar levando o semanário até quase o seu final, e com sentimento declarado por ele que o jornal deveria ter acabado uns 10 anos antes. Mas o alerta final fazia sentido: de fato, nove integrantes do jornal foram presos em 1970. Jaguar passou três meses na cadeia, até ser solto.

Mas, mesmo com prisão e censura, O Pasquim revolucionou a imprensa brasileira. “Tiramos a gravata do jornalismo brasileiro”, disse Jaguar em entrevistas. Ali, ele criou personagens como Gastão, o Vomitador, e Bóris, o Homem--Tronco. É um dos fundadores do bloco de carnaval Banda de Ipanema. E criou, depois, com Ziraldo, a revista Bundas.

Foi um bebedor tão profissional que poderia fazer um livro sobre os bares por onde andou no Rio de Janeiro. E fez mesmo: Confesso que Bebi – Memórias de um Amnésico Alcoólico saiu em 2001 pela Record e é um guia dos botequins cariocas (“Desde um pé sujo como o Bunda de Fora até o sofisticado Esch Café, onde tenho uma garrafa cativa”, escreveu ele na apresentação do livro).

“Jaguar não é um humorista apenas, Jaguar é uma das grandes personalidades da história do Brasil”, afirma Jal, que produziu, em 1999 — com Gualberto Costa, participação de Fernando Carvall, e direção de Louis Chilson —dois documentários: Pasquim A Revolução pelo Cartum e Humor com Gosto de Pasquim. “E, há poucas semanas, tivemos o ok de Jaguar e o aval de sua esposa Célia pra realizar o seu documentário. Agora virou missão”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de agosto de 2025.