A Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em maio deste ano, incluiu uma disciplina sobre a religião Jurema Sagrada na grade curricular do curso de Ciências das Religiões. Essa é a primeira vez que uma disciplina do Ensino Superior se propõe a estudar a Jurema Sagrada. O componente curricular inédito é fruto de uma colaboração técnica com o professor Stênio Soares, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro do The Africa Multiple cluster of excellence da Universidade de Bayreuth (Alemanha). “Através da disciplina, os alunos poderão conhecer mais sobre a Jurema Sagrada, sua importância social e política, reconhecendo suas relações com a cultura paraibana e suas matrizes afro-indígenas”, comentou o professor Stênio Soares.
As atividades desenvolvidas dentro da disciplina vão estar articuladas com o projeto de pesquisa “Museu como Encruzilhada e na Encruzilhada”, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (Fapesq) e também coordenado pelo professor Stênio Soares. As ações conjuntas desenvolvidas entre ensino e pesquisa estão amparando a criação do Museu da Diáspora Africana, dos Povos Originários e das Comunidades Tradicionais, uma obra do Governo do Estado da Paraíba, por meio da Secretaria de Mulheres e Diversidade Humana (Semdh), em parceria com a Secretaria de Ciência e Tecnologia (Secitec) e a Secretaria da Cultura (Secult).
A secretária Lídia Moura, da Semdh, destacou a importância do museu como forma de valorizar esses povos que foram essenciais para a formação do estado da Paraíba. O objetivo do instrumento cultural é contar a história da diáspora africana, dos quilombos existentes no estado, bem como ressaltar a história dos povos indígenas e do povo cigano. “É um momento histórico que nós chamamos de reparação e memória. Queremos trazer a história de formação do estado com todos esses povos. Ele pretende ser um museu vivo, um núcleo de pesquisa, um fomentador dessa história, dessa reparação com esses povos e como eles fomentam a cultura do nosso estado”, afirmou.
Segundo o professor Stênio, o museu é o resultado de uma reivindicação dos movimentos sociais na última Conferência Estadual de Igualdade Racial, que aconteceu em 2021. “Sua importância maior é refletir os anseios do povo preto, indígena e das diversas comunidades tradicionais, historicamente subjugados. Salvaguardar os bens culturais materiais e imateriais é a base de uma política pública de memória. E a memória do nosso povo é seu mais importante patrimônio. Um legado para as gerações futuras e mais uma instituição que contribui para os contornos da história da humanidade”.
De acordo com a secretária, a ideia é que o museu esteja em funcionamento até o fim do ano. “Estamos trabalhando atualmente com muita força, com duas equipes de pesquisadores, profissionais pensando o conceito do museu, o conteúdo, o acervo. A nossa perspectiva de entrega é até o fim do ano”. Lídia também explicou que a ideia do museu tomou uma abrangência maior, pois o Ministério da Cultura, o Instituto Brasileiro de Museus e a Fundação Palmares pretendem integrar o futuro museu paraibano à rede nacional de museus afro-brasileiros.
O instituto também contará com uma parte sobre o sagrado dos povos negros e indígenas. “As religiões de matrizes africanas e indígenas merecem um destaque nesse processo. A Jurema é uma cultura e uma religiosidade que está dentro desse processo de história e reparação, pois possui um contexto especial, já que surge na Paraíba com muita força”, comentou a secretária.
Matrícula para interessados
Segundo o professor Stênio Soares, 46 alunos, de 20 cursos diferentes, estão regularmente matriculados. Além disso, 118 pessoas demonstraram interesse em participar como alunos ouvintes. As matrículas para a matéria ocorreram nos dias 26 e 27 de maio, mas aqueles que ainda desejarem assistir às aulas podem manifestar interesse por meio do e-mail stenio.soares@ufba.br. As aulas terão início amanhã, no Centro de Educação (CE/UFPB).
O professor Stênio Soares comentou que estuda essa temática desde 2003. “Tópicos Especiais em Ciências das Religiões é um componente optativo de tema livre, ou seja, a ementa é aberta para abordar o que o professor preferir. Eu estudo a Jurema Sagrada desde quando ainda era estudante de graduação. Eu entendi que essa era a oportunidade de estudar, exclusivamente, a Jurema em uma disciplina acadêmica”, explicou.
O professor e escritor Valdir Lourenço chama a atenção para a importância da implantação desse componente curricular na UFPB. “Eu acho que essa disciplina vai abrir um leque de possibilidades para a pesquisa e a extensão. Além disso, eu acredito que isso vai dirimir muito o preconceito que existe”, explicou. “Nós podemos pensar no ecumenismo no sentido literal da palavra. Quando a relação com o ser divino, com as divindades, elas transcendem os muros das igrejas, dos templos, e as pessoas não precisam converter umas às outras, elas só precisam respeitar e saber que diferente não significa inferior”.
Religião recebeu título de patrimônio imaterial do Legistativo paraibano
No começo deste mês, a Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB) aprovou o projeto de lei que define a Jurema Sagrada como patrimônio imaterial do estado da Paraíba. A deputada Cida Ramos (PT) foi a autora do projeto. Durante a sessão, a deputada defendeu a valorização das expressões e manifestações culturais e religiosas que se constituíram ao longo da formação social do nosso país.“Esse reconhecimento é importante para que as pessoas desinformadas e as pessoas que são influenciadas pelo racismo estrutural, que se irradia através do racismo religioso, fiquem sabendo que as religiões afro não são seitas, mas que elas são religiões, que a Jurema é uma prática religiosa e que precisa ser reconhecida, que não é folclore também, mas faz parte da nossa cultura. Então é um momento de comemorar os avanços nesse sentido”, comentou o professor Valdir.
Ancestralidade
Valdir Lourenço explicou que a Jurema Sagrada é uma prática religiosa afro-indígena ou afro-ameríndia, isto é, que reuniu cultos ancestrais desses dois povos, e traz consigo a resistência dessas comunidades. Na Paraíba, a Jurema Sagrada é cultuada principalmente no Litoral Sul, nas cidades de Alhandra e Conde, além de na cidade de Santa Rita. O professor destaca a figura da mãe Rita na história da Jurema no estado. No fim do ano passado, ela recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela UFPB.
O professor elucidou que as religiões de matrizes africanas sofrem preconceito pela população em geral por pura ignorância. Em seu livro, intitulado “Os Cultos Afro-Paraibanos, Jurema, Umbanda e Candomblé”, ele aborda o início dessa má interpretação que resultou na discrimiação que essas crenças sofrem atualmente. “Eu trago um pouco dessa memória histórica no meu livro, em que as pessoas começaram a demonizar as religiões afro-brasileiras desde quando alguns missionários e missionárias católicas, cristãs, foram em Angola e viram os assentamentos de Exu. A figura de Exu tem antenas na cabeça, porque a sua função é ser o mensageiro entre a terra e o céu.. Então, associaram as antenas a chifres e demonizaram Exu, demonizaram a nossa religião e nos atribuíram tudo o que era de ruim da Cristandade. Nós recebemos uma culpa indevida. E a figura de Exu é preta, então temos também o racismo religioso”, comentou.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de junho de 2025.