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Do papel à liberdade real: luta dos negros atravessa gerações

publicado: 20/11/2025 08h54, última modificação: 20/11/2025 08h54
Neste 20 de Novembro, ativistas reafirmam compromisso com o combate ao racismo
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Busca por justiça social, reparação e dignidade move comunidade negra no Brasil | Ilustração: Bruno Chiossi

por Eliz Santos*

Antes que a liberdade fosse escrita em leis, ela já ecoava nos quilombos, nas senzalas e nas vozes que se recusaram ao silêncio. Na Paraíba, o caminho da abolição revela não apenas o fim da escravidão, mas a continuidade de uma luta que atravessa séculos — das alforrias de Areia às salas de aula das escolas quilombolas, onde a resistência agora se ensina em forma de conhecimento.

Mais de 130 anos após a assinatura da Lei Áurea, o povo negro ainda luta por uma liberdade que vá além do papel — uma liberdade que signifique reparação, oportunidades e dignidade. No estado, o legado abolicionista ganha novos contornos nas vozes de educadores, ativistas e comunidades quilombolas, que, ao celebrar o 20 de Novembro, reafirmam a educação como instrumento da verdadeira libertação.

Percurso jurídico

O caminho rumo à liberdade foi lento e gradual. A Lei Eusébio de Queirós (1850) proibiu o tráfico internacional de africanos, sob pressão britânica, mas a escravidão interna persistiu. Em seguida, vieram a Lei do Ventre Livre (1871), que libertava os filhos de mulheres escravizadas, e a Lei dos Sexagenários (1885), que concedia alforria aos escravizados com mais de 60 anos — medidas de alcance limitado diante da dura realidade da servidão.

Mas a abolição legal não significou cidadania real. A condição da população negra no momento da libertação era extremamente precária. A Lei Áurea (1888) garantiu a liberdade formal, mas não estabeleceu políticas públicas que promovessem inserção social, acesso à terra ou ao trabalho digno.

O escritor paraibano José Lins do Rego, em “Menino de Engenho”, retratou essa contradição ao recordar o impacto da abolição entre os trabalhadores rurais: “Não me saiu do engenho um negro só. Para esta gente pobre a abolição não serviu de nada”. Segundo o autor, os negros libertos fizeram festa no dia 13 de maio de 1888, mas voltaram ao trabalho no dia seguinte, sem qualquer mudança concreta em suas vidas.

Pioneirismo local

Na Paraíba, a cidade de Areia tornou-se símbolo da liberdade antecipada. Em 3 de maio de 1888, 10 dias antes da assinatura da Lei Áurea, o município libertou oficialmente seus escravizados — um gesto político e moral de vanguarda.

Pesquisadores apontam que o processo abolicionista local envolveu mobilização popular, de estudantes e lideranças religiosas, tornando Areia um verdadeiro laboratório social da liberdade antes mesmo do decreto imperial.

Esse protagonismo local reforça a ideia de que a abolição não foi apenas um decreto vindo do Rio de Janeiro, mas um movimento plural, tecido em diferentes territórios e temporalidades — das senzalas aos engenhos, das alforrias individuais à luta coletiva.

Sem cessar

Para o movimento negro, o 13 de Maio é uma data histórica, mas o 20 de Novembro — Dia da Consciência Negra — é o verdadeiro símbolo da resistência. É o dia de Zumbi dos Palmares, de Dandara e de todos que ergueram quilombos e lutam por liberdade.

A educadora e ativista Renálide Carvalho destaca que a data “é um marco de celebração e de luta de reafirmação do compromisso coletivo contra o racismo e suas novas formas de escravidão”. “A verdadeira abolição ainda é uma conquista em curso — não basta o fim formal da escravidão; é preciso acesso à educação, à terra, ao emprego e à reparação histórica”, reivindica.

Memória

Documentos preservados em acervos como o do Centro de Memória da História Política da Paraíba — com registros de alforrias, processos judiciais e jornais — ajudam a reconstruir as vozes de quem viveu esse período. Eles revelam que a libertação legal abriu um novo capítulo de exclusão, mas também de resistência.

Renálide reforça que a abolição de 1888 foi “simbólica e incompleta”. Ela lembra que o sentimento de abandono após o 13 de Maio foi imortalizado na música “14 de Maio”, do cantor e compositor baiano Lazzo Matumbi, um dos expoentes da música negra no Brasil. “No dia 14 de maio, eu saí por aí / Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir / Levando a senzala na alma, subi a favela / Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci”, cita.

A ativista explica que esses versos representam a realidade de um povo que, mesmo liberto no papel, permaneceu sem acesso a direitos básicos. “O povo negro, protagonista das lutas pelo fim daquele sistema que aviltava a dignidade humana, nunca obteve reparação — nem histórica, nem econômica. A Lei Áurea não garantiu escola, terra, saúde, emprego ou moradia digna. Das mirradas linhas da lei assinada pela princesa regente, não se revelou uma sequer que assegurasse a integração real dos libertos na sociedade brasileira. Por isso, não podemos dizer que houve uma abolição de fato no país, mas apenas formal — cujos efeitos desejados ainda custam a se materializar”, conclui.

Assim, revisitar o processo abolicionista na Paraíba é mais do que rememorar leis e datas: é reconhecer a história como força transformadora, ainda em construção.

Das iniciativas pioneiras em Areia aos quilombos que resistem, das vozes que lutam por igualdade nas escolas e nas ruas, o percurso mostra que a liberdade conquistada no século 19 ainda precisa ser reafirmada todos os dias.

Educação é arma contra o racismo e caminho para a igualdade

Renálide Carvalho acredita que a educação é a principal arma contra o racismo estrutural. Ela afirma que a luta contra as desigualdades precisa ser travada em múltiplas frentes — e a sala de aula é uma delas.

“Arte e a educação, por exemplo, são peças fundamentais para virar esse jogo desequilibrado e retraçar as rotas malfeitas do colonialismo que nos mata todos os dias”, destaca a educadora.

Ela ressalta a importância da Lei nº 11.645/08, que tornou obrigatória a abordagem das culturas afro-brasileira e indígena nas escolas.

“A lei abriu caminhos para que novos saberes e vozes — antes silenciadas — ganhem espaço e reconhecimento nos currículos”, pontua.

Para a educadora, somente uma educação antirracista, democrática e plural poderá transformar mentalidades e estruturas sociais.

Legado e resistência

Nas escolas quilombolas da Paraíba, o Dia da Consciência Negra é vivido como um momento de afirmação e aprendizado coletivo. O diretor Márcio Bezerra, da Escola Quilombola Amélia Maria da Luz, em Pombal, explica que a data vai muito além de uma simples comemoração.

“O 20 de Novembro não é uma data comemorativa, como muitos pensam. É uma oportunidade para abrirmos o coração e a mente dos alunos para a riqueza da cultura, da história e, sobretudo, da resistência do povo negro no Brasil”, afirma.

Ele acrescenta que o tema precisa estar no cotidiano escolar: “Mais do que lembrar o passado, buscamos construir um futuro em que a cor da pele não seja motivo de desigualdade, mas de orgulho e respeito mútuo”.

Questionado sobre o papel das escolas quilombolas na atualidade, o diretor compara esses espaços aos antigos territórios de resistência formados por pessoas escravizadas. “As escolas quilombolas são um espaço vital de resistência, porque protegem a memória e a identidade dos alunos. Antes, a luta era pela fuga e pela defesa armada do território; hoje, é pela educação e pela cultura — ferramentas poderosíssimas para garantir o futuro e o reconhecimento do povo quilombola”, conclui.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de novembro de 2025.