Trinta anos após a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a luta por memória, verdade e justiça voltou a ocupar o centro do debate nacional. Centenas de familiares reuniram-se, em Brasília, para o 2º Encontro Nacional de Familiares de Pessoas Mortas e Desaparecidas Políticas (Enafam), realizado durante todo o dia de ontem e na última quarta-feira (3), em um espaço marcado por escuta, acolhimento e reafirmação da história das vítimas da Ditadura Militar — entre elas, o geólogo paraibano Ezequias Bezerra da Rocha.
Nos corredores do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, pais, filhos, irmãos e netos circulavam com retratos, lembranças e cicatrizes que atravessam gerações. Entre eles, estava a paraibana Fernanda Rocha, que mantém viva a memória interrompida de seu tio, Ezequias, morto e desaparecido durante o Regime Militar.
Natural de João Pessoa e formado em Geologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ezequias desapareceu em 11 de março de 1972, no Recife (PE), após ser preso e torturado pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI) do IV Exército — órgão de repressão da Ditadura responsável por prisões ilegais, interrogatórios e torturas de opositores políticos. Sua esposa, Guilhermina Bezerra da Rocha, também foi detida na mesma operação e se tornou uma das principais testemunhas das violências sofridas por ele. Anos depois, em 1977, Guilhermina morreu em um acidente de trânsito em Teresina (PI), episódio que familiares consideram, até hoje, cercado de mistério.
A história do casal chegou às novas gerações por meio dos relatos preservados por Bento Bezerra, sobrinho de Guilhermina, que conviveu com os dois e testemunhou a vida recém-iniciada que construíam. Casados havia apenas um ano, Ezequias — à época, com 28 anos — era um jovem estudioso, prestes a iniciar o mestrado em Geofísica na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e o casal planejava seguir carreira acadêmica na Europa Oriental. Segundo esses relatos, Ezequias era profundamente comprometido com a democracia e acreditava na educação como caminho de libertação e transformação comunitária.
Para Fernanda Rocha, a busca por verdade começou ainda na infância, marcada pelas palavras do pai e pelo silêncio que envolvia a história de Ezequias — um silêncio que ela decidiu transformar em voz e luta.
“Eu repito sempre o que meu pai, Evandro, dizia: não existe reparação capaz de compensar a perda de um familiar. Cresci ouvindo, de forma velada, a história do meu tio assassinado na Ditadura, mas só na vida adulta compreendi a dor e a dimensão dessa ausência. Meu tio Edinaldo também dedicou a vida a provar que Ezequias não fugiu, como o Estado tentou forjar, mas que foi brutalmente torturado e morto. Os laudos médicos confirmam uma das piores violências registradas no Nordeste. Ler aquilo é perceber o tamanho do ódio e a urgência da nossa luta por verdade”, relata.
A dor pessoal se soma às lacunas ainda abertas na política de memória no Brasil. Segundo Fernanda, as violações do período não foram totalmente esclarecidas.
“Ainda há muito por investigar, principalmente sobre o número real de desaparecidos. A Comissão reconhece 434 mortos e desaparecidos, mas sabemos que esse número é muito maior. E, mesmo com avanços, os agentes do Estado responsáveis por essas violações nunca foram punidos. Há questões urgentes, como a revisão da Lei de Anistia. Precisamos que essa seja uma política de Estado, sem brechas ou interpretações que prejudiquem o trabalho da própria Comissão”, reivindica.
Retomada

- Desaparecimento do geólogo e luta de seus familiares por justiça foi destaque na imprensa pernambucana | Foto: Reprodução/Comissão da Verdade de Pernambuco
O 2º Enafam, organizado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, marca os 30 anos do grupo, criado pela Lei nº 9.140/1995 para investigar e reconhecer mortes e desaparecimentos ocorridos na Ditadura Militar.
Nos últimos anos, a Comissão retomou suas atividades com foco na localização e identificação de restos mortais, na análise documental e na retificação de certidões de óbito. Em 2025, o trabalho foi intensificado, e o balanço dessas ações foi apresentado no encontro em Brasília, que também incluiu escutas com familiares e a construção coletiva do planejamento para o próximo ano.
Certidões retificadas
Durante a solenidade, foram entregues 26 certidões de óbito corrigidas, reconhecendo, oficialmente, que as mortes ocorreram por ação do Estado no contexto da perseguição política instaurada pelo Regime Militar. Entre as famílias contempladas, está a de Ezequias. Fernanda, porém, decidiu não receber a certidão em Brasília — decisão carregada de forte simbolismo histórico e afetivo.
“Optamos por receber a certidão em Recife, onde Ezequias foi assassinado. Estar aqui é importante, mas receber esse documento na cidade onde ele foi morto é um ato de memória e justiça. É também uma forma de honrar meu tio Edinaldo, que dedicou a vida a essa luta”, declarou.
A cerimônia também abriu espaço para homenagens a familiares e militantes que já faleceram, reforçando o impacto profundo e contínuo dessas perdas.
“Foi muito emocionante ver, ontem, não apenas familiares, mas amigos representando aqueles que já se foram, e perceber o quanto é significativo para essas famílias receber a certidão de óbito. Muitos dizem que isso simboliza um encerramento de ciclo. Depois de 50, 60 anos, ainda não é possível identificar muitos corpos e, por isso, o trabalho da Arqueologia e da Antropologia Forense é tão essencial”, afirma Fernanda.
Neste ano, além das certidões entregues em Brasília, outras 63 foram concedidas em Minas Gerais e mais 102 em São Paulo, fortalecendo o compromisso nacional de recompor a verdade histórica.
Olhar para o futuro
Ao fim, o 2º Enafam deixou um saldo de reafirmação coletiva: a memória dos desaparecidos não pertence ao passado, mas ao presente que exige responsabilidade e vigilância. As certidões entregues representam não apenas um ato administrativo, mas um gesto histórico — a restituição de verdade às famílias e ao país.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 5 de dezembro de 2025.
