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Bono faz as pazes com o pai em filme confessional

publicado: 03/06/2025 09h05, última modificação: 03/06/2025 09h05
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Bono canta e conta histórias no documentário que está no catálogo da Apple TV+ | Foto: Divulgação

por André Cananéa*

O U2 anda meio parado. Em quase uma década, não lançou material inédito; o baterista se afastou por problemas de saúde e a banda só fez uma turnê em Las Vegas como promoção de inauguração da sofisticada MSG Sphere Arena entre setembro de 2023 e março de 2024.

Nesse recesso, Bono e o guitarrista The Edge estrelaram um bom documentário (A Sort of Homecoming, que já foi tema desta coluna) e o vocalista lançou seu livro de memórias. Surrender – 40 Músicas, uma História (Intrínseca) é, claro, chapa branca, mas contém ótimas histórias, profissão de fé, encontros políticos e uma surpreendente “terapia”, em que Bono exorciza seus demônios familiares.

 Uma parte do livro ganhou vida através do filme Bono – Histórias de “Surrender”, disponível na Apple TV+ desde a última sexta-feira (30). Em cima de um palco, sozinho, Bono Vox canta sucessos do U2 (rearranjados para cordas) e conta algumas das histórias do livro. Esses monólogos são acompanhados por uma dramatização cinematográfica, turbinada com jogo de luz e interpretação de teatro japonês, moldurados por uma sóbria fotografia em preto e branco e a direção eficiente de Andrew Dominik (O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford).

Filme e livro começam com um susto que o vocalista do U2 teve há quase dez anos, que o levou à mesa de cirurgia e o deixou entre a vida e a morte (na época, isso foi noticiado muito discretamente, e sem detalhes). “Nasci com um coração excêntrico”, começa ele. “Em uma das cavidades do meu coração, enquanto a maioria das pessoas têm três portas, eu tenho duas. Uma porta vaivém, que no Natal de 2016 estava se soltando das dobradiças”.

Por quase 90 minutos, Bono relembra como ele, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. formaram o U2 no fim dos anos 1970; a influência do Ramones sobre o vocalista; como os integrantes se relacionam com religião – e como isso quase pôs fim ao quarteto –, presença em diversas canções da banda; o casamento de Bono com a namorada de infância Alisson “Ali” Stewart, o ativismo do U2 (em especial, do vocalista, que nos anos 1980 chegou a ser voluntário em um orfanato na Etiópia) e, em especial, os pais.

Iris, a mãe de Paul David Hewson (nome verdadeiro de Bono), morreu quando ele tinha 14 anos, e a partir dali ele passou a morar numa casa exclusivamente masculina, com o pai, o tenor amador Brendan Robert “Bob” Hewson, e o irmão, Norman.

“Eu ansiava pela atenção do meu pai. Eu queria que ele achasse que eu também tinha música em mim. Ele não me ouviu. Então eu cantei mais alto, e mais alto. E, pra ser sincero, foi isso que me trouxe aqui esta noite”, confessa Bono, que ao longo do filme (e do livro) vai revelando um pai tóxico, desses que colocam o filho para baixo, que não reconhecia o talento do vocalista, mesmo quando o U2 se tornou um dos principais grupos de música do mundo.

Em um dos melhores momentos de Bono – Histórias de “Surrender”, o cantor fala do seu envolvimento com Luciano Pavarotti (o pai era um grande fã de óperas e, por conseguinte, do tenor italiano), que acabou resultando na canção “Miss Sarajevo” e na apresentação do vocalista e do guitarrista do U2 no projeto Pavarotti & Friends, em 1995.

Bono levou Bob ao evento, por insistência de The Edge, que também levaria os pais. Afinal, uma das convidadas da noite era a princesa de Gales, Lady Di, e os pais do guitarrista eram galeses e estavam ansiosos por conhecê-la, mas o pai do vocalista era irlandês, e não ficou empolgado com a ideia de interagir com a realeza.

O plot twist dessa história é que, ao descer do palco, Bono viu Lady Di cumprimentar Bob. “Ela estava lá. Mais de 1,80m de altura...”, recorda o vocalista no palco do Beacon Theatre (Nova York). “O choque de se encontrar com a família real britânica logo virou uma paixão adolescente”, descreve, para concluir: “Oitocentos anos de opressão desapareceram em oito segundos”.

O monólogo final é de efeito. Bono diz que nasceu “com os punhos erguidos”, para vencer as batalhas do cotidiano. “Eu tenho fé suficiente para ter esperança, e esperança suficiente para amar. Essa música é como eu pratico isso. E meu pai na Terra, ele me deu isso”. E encerra o filme cantando, à capela, “Torna a Sorrento” (famosa na voz de quem? Pavarotti!). Por acaso (ou não), Sorrento Lounge era o bar em que pai e filho se encontraram diversas vezes, inclusive, onde Bob revelou a Bono que estava com câncer em estado terminal. Ele morreu em 2001.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 03 de junho de 2025.