O ano de 2025 caminha para ser um dos mais tristes da cultura brasileira em muito tempo. Em menos de um mês, perdemos Jaguar (24/8), Luis Fernando Verissimo (30/8), Silvio Tendler (5/9) e Angela Ro Ro (8/9). No último sábado, 13 de setembro, foi a vez do Bruxo mais querido do Brasil, Hermeto Pascoal, aos 89 anos.
Minha primeira lembrança de Hermeto remete ao início dos anos 1990, em um show no Teatro de Arena do Espaço Cultural, provavelmente dentro de um projeto patrocinado pelo Banco do Brasil. Fiquei embasbacado. Eu não passava de um mero calouro no curso de Comunicação da UFPB e fiquei apenas na plateia. Anos depois, já formado, tive a chance de entrevistá-lo algumas vezes, a maioria por telefone. E não era difícil.
Certa vez, o jornalista carioca Célio Albuquerque me convidou a escrever um artigo sobre o LP A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973) para a antologia 1973 – O Ano Que Reinventou a MPB, lançada em 2013 pela Sonora Editora. Para dar mais consistência ao texto, disquei para a casa de Hermeto, no Rio. Ele mesmo atendeu e conversamos por quase uma hora — falamos de Miles Davis ao “coral” de aves e bichos que aparece no disco.
Enquanto escrevo estas linhas, ouço a gravação desse papo mais uma vez. Hermeto, sempre tão solícito, gentil e bem-humorado, atendeu brincando: “Ué, a gente não combinou que essa entrevista seria às 2 e meia da manhã?” (eram 2 e meia da tarde). Mas na frente, me confidenciou uma conversa que teve com o revolucionário músico de jazz Miles Davis, que teve a honra de contar com o “crazy albino” — “albino louco”, como o norte-americano se referia ao alagoano — em seu grupo: “Eu disse a Miles: eu vou fazer o que eu chamo de ‘música universal mais importante do mundo’, e eu vou fazer isso no Brasil”.
Conheci Hermeto pessoalmente em dezembro de 2015, quando ele voltou a João Pessoa como atração de abertura do Festival Nacional de Arte (Fenart). Naquele ano, a edição prestava uma justa homenagem ao paraibano Sivuca, morto em 2006. “Sivuca dizia que Hermeto era o Beethoven do século 20”, declarou Glorinha Gadelha, viúva de Sivuca, em uma frase que repercutiu na imprensa, à época.
Hermeto e Sivuca dividiram palcos no Brasil e no exterior. Há quem diga que chegaram a compor juntos. O certo é que muita gente os confundia, e essa semelhança rendeu boas brincadeiras entre eles. Hermeto me contou a seguinte história: os dois desciam a escada do Teatro Castro Alves quando, olhando para o reflexo de Sivuca, Hermeto disse: – Bom dia, Hermeto. Ao que Sivuca, olhando para o reflexo de Hermeto, devolveu: – Bom dia, Sivuca!
A relação de Hermeto com a Paraíba merece ser amplamente documentada. Certa feita, ele me disse que chegou a morar em João Pessoa e adorava passear pelo Ponto de Cem Réis. Suas conexões com a Paraíba também passam por Geraldo Vandré e Zabé da Loca.
Na metade dos anos 1970, Hermeto integrou o grupo formado por Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira, criado para acompanhar o cantor e compositor Geraldo Vandré. O conjunto, inicialmente chamado Trio Novo, virou Quarteto Novo com a entrada do alagoano. Eles subiram ao palco com Vandré e também entraram em estúdio, participando das gravações de Canto Geral (1968), lançado um ano depois do Quarteto Novo registrar seu único LP, o homônimo Quarteto Novo. Neles surgem parcerias de Vandré e Hermeto, como ‘O ovo’ e ‘Canto geral’ (no repertório do Quarteto) e ‘De serra, de terra e de mar’, composta pelos dois com Theo de Barros (registrada no LP do paraibano).
Zabé da Loca também cruzou o caminho de Hermeto Pascoal. Anos antes de sua morte, em 2017, ela viveu o auge do reconhecimento nacional: em 2009, aos 85 anos, venceu o Prêmio da Música Brasileira na categoria Revelação pelo CD Bom Todo. Em um desses momentos de prestígio, se apresentou no Sesc São Paulo, em uma noite que seria encerrada justamente pelo Bruxo de Alagoas.
Reza a lenda que, após o show de Zabé e seu grupo de pífanos, ela foi para a arquibancada prestigiar Hermeto. Em certo momento, irrequieta, começou a resmungar que iria “derrubar esse véio”. No jargão musical, “derrubar” significa lançar acordes que dificultam o acompanhamento de outro músico.
De repente, Zabé pegou seu pífano, invadiu o palco e se pôs a tocar. Hermeto, surpreso, tentou acompanhá-la. O público foi ao delírio, acreditando que se tratava de uma improvisação ensaiada. Mas, com fôlego de sobra, Zabé cumpriu o que prometera: deu trabalho a Hermeto, que acabou deixando o palco antes do previsto. Triunfante, voltou ao seu assento e, com a discrição que lhe era peculiar, sussurrou a quem me contou essa história: “Não disse que eu derrubava aquele véio?”.
Siga na paz dos justos, Hermeto. Obrigado por tudo!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de setembro de 2025.