Quando está com os mais de 40 graus de febre pela corrida do ouro, o homem é capaz de tudo, inclusive “peitar” a natureza para ter a reluzente riqueza dourada extraída da terra. Longe do banquete feito com a própria bota de certo clássico de Chaplin ou da alucinação de imaginar o companheiro de garimpo como uma galinha por conta da fome puxando as tripas, o escritor norte-americano Jack London (1876–1916) mostrou por onde caminha (e leva) a cobiça humana em um de seus contos.
Por outro lado, aproximadamente um século depois (o conto tem duas versões: uma publicada em 1902 e a outra, em 1908), o quadrinista francês Christophe Chabouté produziu uma adaptação do que muitos críticos consideram como o melhor conto de London: Acender uma Fogueira (2006), que finalmente chega ao Brasil pela editora que revelou o artista por aqui, a Pipoca e Nanquim.
Em 1816, foram descobertas imensas reservas de ouro, no norte do Canadá, mais especificamente na região de Klondike. Assim como aconteceu com a Serra Pelada, famoso garimpo brasileiro localizado no estado do Pará, aproximadamente um século e meio depois, houve uma verdadeira corrida de milhares de aventureiros pelos quatro cantos do mundo, mantendo aceso o foco do sonho de riqueza.
- Exemplos da narrativa cinematográfica de Chabouté em “Acender uma Fogueira”, inspirada num dos melhores contos de Jack London
A diferença é que, na região canadense, essas pessoas enfrentaram um dos piores inimigos que a natureza selvagem poderia impor: o implacável frio invernal.
Na brancura desse cenário inóspito, que pode chegar a 45 graus negativos, o recorte dessa época é protagonizado por um homem e seu fiel cão, que estão viajando para se encontrar com um grupo de exploradores.
Chabouté já chama a atenção pela capa: no canto, mas acima de tudo, está a silhueta do homem tentando acender a fogueira. “Tomando” boa parte da mancha gráfica, a alvura que representa o frio. Lá embaixo, em vermelho como brasa, o título da obra.
O quadrinista sabe muito bem aproveitar a brancura dessa imensidão nos seus quadros, fazendo o leitor e a leitura terem a sensação térmica do lugar. Outro ponto é o mundo “cinzento” no qual predomina o frio e que é impactado com a cor intensa do fogo, mesmo sendo alimentada por um mero fósforo. Sua narrativa alterna entre o silêncio avassalador da região e os recordatórios de pensamentos do protagonista, que relembra os conselhos de estranhos e o que ele está passando nesses momentos tensos. O tempo disponibilizado entre os quadros também coloca quem lê em aflição, já que cada segundo conta na corrida febril de simplesmente atear fogo na madeira.
Tudo isso alinhavado pelos detalhados e cinematográficos desenhos de Chabouté faz de Acender uma Fogueira uma das grandes obras do autor, que também adaptou um dos grandes clássicos da literatura mundial, Moby Dick, de Herman Melville (1819–1891), também lançado pela Pipoca e Nanquim.
A única parte “negativa” dessa aventura é uma “virada de página” que não existiu em um dos momentos mais tensos da história (nos quadrinhos, geralmente um momento de revelação ou reviravolta é colocado na página par, quando o leitor ou a leitora só descobre na virada).
Fora isso, Acender uma Fogueira é uma breve narrativa desesperadora sobre a representação de uma situação de frio extremo, o que faz lembrar o livro e a adaptação cinematográfica de A Sociedade da Neve— um relato bem mais extenso acerca do homem e seus limites.
É a literatura naturalista de Jack London aliada ao poder imagético de Christophe Chabouté, dois dos maiores autores de suas épocas, nos seus respectivos gêneros.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de julho de 2025.