“Ontem à noite, às 2h17, todas as crianças da sala da Sra. Gandy acordaram, levantaram da cama, desceram as escadas, abriram a porta da frente e saíram no escuro... e nunca mais voltaram”. Essa sinopse, um tanto longa para ser colocada em um cartaz, está justamente no pôster promocional de A Hora do Mal (Weapons, 2025). Mais abaixo, algumas dessas crianças correm pelas ruas de uma cidadezinha norte-americana, com as mãos esticadas como se estivessem brincando de serem caças da Força Aérea dos EUA em pleno ar (impulsionadas pela música “Beware of Darkness”, de George Harrison, durante a sequência inicial).
Sem a chancela de um estúdio de cinema “da moda” como um A24 ou sem pertencer a uma franquia do gênero, como o “invocaverso” que só se preocupa em jogar sustos repentinos aleatórios e sem contexto, por que esse filme de terror está fazendo tanto sucesso? Em apenas um final de semana, a produção já se pagou e permanece em cartaz (inclusive, no Brasil) com bons números de bilheteria.
O hype — outra palavrinha da moda, o que torna um produto tão popular no boca a boca que gera grande expectativa ou interesse — em torno de A Hora do Mal está na estrutura narrativa bem contada de um longa-metragem bem acima da média, mas sem ser aqueles filmes “cabeça” ou “conceitão” que muitos insistem em chamar de “pós-terror” (por favor, esse conceito cretino non ecziste!).
Simplesmente, é um filme muito bom, independentemente do gênero, inclusive. E, muitas vezes, só precisa disso. Mesmo com o título brasileiro sendo puxado totalmente dos calabouços publicitários dos anos 1980, quando tínhamos A Hora do Pesadelo, A Hora do Vampiro, A Hora da Zona Morta, entre dezenas de outros. Mas, fazendo às vezes do “advogado do diabo”, até que serviu bem no contexto visto na sinopse supracitada e por conta da tradução muito mais aberta e menos chamativa do seu título original, “Armas”.
Quem viu Noites Brutais (Barbarian, 2022) — um Airbnb maldito —, soube que o diretor e roteirista Zach Cregger era uma promessa no terror, mesmo se não gostasse da segunda parte do filme, que tem uma “reviravolta” bastante peculiar, que descamba para o clichê. Na sua segunda investida no gênero, ele já coloca o espectador a par da situação com a narração em off de um jovem estudante anônimo e já nos joga para um mês depois do desaparecimento coletivo, no qual só sobrou apenas uma criança.
Outra grande cartada publicitária de mestre da produção está no seu trailer. Com as redes sociais, cada vez mais sabemos o que será cada ato de um filme, inclusive toda a sua estrutura narrativa, com as reviravoltas e até mesmo o final. Vou dar três exemplos mais recentes: Abigail, Pecadores e Acompanhante perfeita (este último, produzido por Cregger, tem até o seu cartaz como um grande spoiler). Fico imaginando o infarte fulminante de Hitchcock, caso Psicose (1960) fosse lançado nos dias de hoje. No trailer de A Hora do Mal, sabemos apenas o que a sinopse revela (na narração inicial do filme, nos primeiros minutos), com algumas passagens de pesadelos dos personagens. O público agradece.
Em capítulos, o longa aborda a perspectiva dos personagens que batizam as partes. Quem parecia ser apenas um mero figurante na visão da professora (vivida pela Julia Garner, em grande fase), é importante mais para frente. Com uma edição que “casa” as cenas e movimentos dinâmicos de câmera, essas mesmas perspectivas são revisitadas em outros ângulos quando momentos narrativos se cruzam. O que pode parecer totalmente esquisito, misterioso ou deslocado, é respondido mais para frente, quando as peças do quebra-cabeças começam a se encaixar. A própria mitologia criada por Cregger não é totalmente explicada, mas sabemos que o realizador não quer ser didático ou expositivo demais, o que pede um pouco mais de atenção da audiência.
Outras excelentes cartadas que o filme oferece são as metáforas e leituras que encontram-se subentendidas. Quem vai estar apenas ligando para o quanto ainda tem de pipoca para ruminar vai perder o quanto Zach Cregger modela e aprofunda as camadas dos seus personagens e da trama em si. Um exemplo é um dos pais (Josh Brolin) que acusa a professora de ser a responsável pelo desaparecimento. O filho tinha um comportamento agressivo na escola, reflexo que pode ser visto pela inabilidade do pai em tentar conversar com ele em um desses pesadelos.
O próprio ato de acusar a professora já nos remete aos debates de “doutrinação” ou até mesmo de violência fatal nas escolas, promovida pela cultura bélica. Como estão sendo tratadas as crianças? Uma professora que se importa com as crianças que educa acaba sendo “alvo” das suspeitas bombardeadas pelos pais. Apesar de não ter um passado impecável, a Sra. Gandy revisita os fantasmas passados pelo gargalo de uma garrafa. Repare também no figurino da personagem, como ela se veste no primeiro dia de aula após o trauma e em outras ocasiões, que remete até o deslocamento dela naquela cidade, onde a força policial afirma que ainda está fazendo algo, mas que nem uma óbvia ideia vinda de um dos pais sobre traçar coordenadas foi realizada pelos “homens da lei”.
Vindo da escola de humor, o diretor Zach Cregger demonstrou essa faceta em Noites Brutais e, aqui, ele tem a habilidade (e a segurança) de tornar uma sequência vital do filme em uma comédia bizarra, mas sem esquecer dos toques de gore. O que resulta em muitas risadas nervosas da plateia durante as cenas catárticas, algo que não se imaginaria em um filme de terror de imersão psicológica, com sustos precisos e justificáveis. Não foi à toa que o produtor seria o badalado Jordan Peele, que vem das mesmas origens cômicas e usa essas ferramentas humorísticas em suas produções do gênero, vide Corra! (1917) e Não, Não Olhe (2022). Engraçado mesmo é ver que algumas pessoas reduzem o filme a esse choque, deixando de lado todas as questões que ele traz para refletir e — por que não? — entreter.
Infelizmente, haveria muito mais para falar sobre o longa, incluindo as pitadas de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962) e as piscadelas com os contos de fadas. Até Stephen King é reverenciado. Porém, o relógio do espaço que tenho nesta coluna badala e a carruagem acaba de virar jerimum.
Em tempos que o ponto alto de uma grande produção hollywoodiana é concentrado apenas nas cenas pós-crédito, A Hora do Mal prende a atenção durante os seus 128 minutos, principalmente no fato de como é conduzido. Lógico, não é inovador ou uma obra-prima. O hype não suga o seu sangue cinéfilo daí. É apenas uma história que prende e envolve o espectador até o fim com seu elenco bem afinado. Que apareçam mais “armas” assim, de um gênero tão marginalizado como o terror…
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de agosto de 2025.