Leio histórias em quadrinhos desde quando “só sabia ler as ‘figura’”, como dizia no português coxo o figurante/personagem Salgueirinho (vivido — pasmem! — pelo agora cantor e compositor Mumuzinho), em Cidade de Deus (2002). Era um universo que fascinava pelas cores e pelo “movimento” imaginativo que dávamos entre um quadro e outro, quase como visitando a velha gruta dos seus ancestrais pré-históricos.
Antes de juntar os gibis, eu me lembro de um almanaque do Pica-Pau, que estampava vários personagens na sua capa. Igualmente me recordo da raiva de não saber ler as palavras, não conseguir ninguém que leia para mim e apenas ficar nas conjecturas do que estava acontecendo apenas com a ação das ilustrações.
Anos depois, já hábil juntador de palavras, em outubro de 1986 — ano que vem completa quatro décadas nessa vida — decidi “colecionar” quadrinhos. O primeiro foi o Super-Homem (nada de Superman aqui), número 28 da primeira série dos chamados formatinhos da Editora Abril (antes de ser “Jovem”). Os poucos que pedia para minha mãe e a minha avó trazerem do Centro da cidade, eu colocava dentro da minha fronha para dormir literalmente de cabeça nos gibis. Aquilo “roubava” meus sonhos quando descobri que amassavam. De lá, a pequena pilha migrou para o topo de uma das caixas de som do três em um de casa.
Até a universidade, eu achava que não existia um ser humano sequer que lia histórias em quadrinhos. Em todas as salas de aula que frequentei, nunca tinha visto alguém folheando uma revistinha ou comentando sobre as aventuras em Patópolis ou no Bairro do Limoeiro, muito menos as jornadas espaciais das sagas super-heroícas. Nos primeiros anos da alfabetização, só vi um menino com uma revista em preto e branco muito violenta (que fui saber recentemente que era o Fantasma Negro — o espectro da cidade — contra o Dr. Hipnose) e um exemplar de Os Novos Titãs que outro garoto com mais idade me vendeu no ônibus escolar, por começar a desgostar de quadrinhos. Fora isso, foram anos e anos frequentando quase que diariamente a banca perto do Bompreço do Mercado Central, sem ver nenhuma alma que lesse pelo menos o Penadinho.
Já adolescente, o máximo que cheguei de um sidekick foi o meu amigo fã de Mara Maravilha, que passava na banca comigo para folhear as revistas de fofocas para ver se a cantora e apresentadora infantil estava na pauta de alguma seção (não preciso dizer que a Playboy dela foi o suprassumo dessas idas).
Já me considerava o personagem do clássico Eu Sou a Lenda (o livro de Richard Matheson, não a decepcionante adaptação com Will Smith), o último (ou único) dos moicanos que tinham paixão por quadrinhos, cujo dinheiro do lanche era trocado por um jejum intermitente, mas acompanhado por um gibi da Turma da Mônica para ser lido na longa jornada da linha do ônibus, do Centro para casa.
Uma dessas idas à banca, eu — o Charlton “Omega Man” Heston ou o Vincent Price, já diplomado como único sobrevivente da praga — passei por uma visão inusitada: um garoto de uma escola vizinha, com o seu sidekick, entusiasmado por ter chegado a Liga da Justiça e a Superpowers do mês. Eu fiquei ali, parado, se reação, apenas observando como o cientista Robert Neville.
Por ser outros tempos, no começo dos anos 1990, as revistas Playboy eram colocadas no sopé daquela banca, praticamente nos joelhos dos clientes. Sem interesse nenhum em ver o garoto praguejar para si que a sua mesada toda iria embora naquela visita à banca, o sidekick apontou para a “coelhinha” da vez e disse para ele pegar era essa edição. Ignorando completamente o amigo, ele continuou folheando os gibis. Pelo que puxo pela memória, fui embora para a parada de ônibus sem saber se ele sacrificou toda a mesada naquele dia.
A sensação foi como o doutor Neville encontrar a mulher que parece não ser afetada pela luz do dia (para quem não leu o romance, é Um Maluco no Pedaço encontrando a Angélica, o crush do Buscapé em Cidade de Deus). Nunca mais vi os amantes de quadrinhos até ir para a universidade…
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de outubro de 2025.