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Cartilha ilógica

publicado: 06/06/2025 08h29, última modificação: 06/06/2025 08h29

por Sandra Raquew Azevêdo*

Esse ano tenho que escrever um livro sobre trajetória profissional. Na verdade, já deveria ter começado. Mas me dei o direito de furtar meu próprio tempo e mudar a dinâmica dos ponteiros.

Mesmo não tendo começado, operacionalmente, a desenhar as palavras, a cartografia sobre meus passos já explode em mim. E não por acaso, as ideias fecundadas vão chegando à superfície.

O que eu queria é que minhas doidices, meus perrengues, minha inventividade, meus descompassos, minhas crenças e incredulidades também pudessem estar neste livro. E estou vendo como vou construir um caminho discursivo em que a lógica e a não lógica possam dançar abraçadas no meu texto. Pois, se existe uma cartilha para a lógica, deve existir também um espaço para a desconstrução de um certo tipo de racionalidade.

Eu tenho que falar sobre trajetória acadêmica e queria falar das minhas leseiras, de como, por décadas, me mantive ingênua no mundo. Criada num microcosmo como água dentro de um cacto. E quando fui escorrer como flor de mandacaru levei um monte de espinhada.

Só que foi naquela inocência tímida e extrovertida, cercada de topadas que a pedagogia da pergunta começou a fazer morada em mim. Se anos depois fui estudar a obra de Paulo Freire no mestrado em Educação, já havia dado-me conta que o quintal de mainha havia alfabetizado-me em linguagens que nem sempre estão escritas em papel.

Quando escrevo, ou navego por meus pensamentos, vez por outra sinto o gosto dos pedaços malva, mastruz, manjericão, que torava para experimentar, e sinto o cheiro da terra molhada. Pois aprendi a sentir o gosto das coisas também com o olfato, e é assim ainda hoje que cozinho. É o cheiro que me guia e, às vezes, me localiza. A memória olfativa que me faz perceber o cheiro da chuva chegando com o vento, antes mesmo das gotas caírem.

A trajetória da gente talvez seja sobre nossas “esquisitices”. Ou seriam particularidades, individuação? Não sei. O que sempre soube é que o incomum sempre me atraiu e habitou mais a vida inteira. Embora tenha traçado algumas rotas até muito convencionais.

Eu fui menina que nunca gostou da Branca de Neve e os Sete Anões, e das princesas da Disney, e das festas de 15 anos para as meninas. A garota que não estava lendo aqueles livros para as moças. Ao invés disto, gostava mais de ver as coisas da rua e estava apegada a sonoridade ao redor. E, quando podia, ancorada com os livros de Milan Kundera, Rachel de Queiroz, Malba Tahan, Vinícius de Moraes...

Ainda bem que existia na TV o Sítio do Pica Pau Amarelo, para que nas lendas da cultura popular brasileira pudesse me achar nas personagens. E existia um mundo sonoro para eu dançar sozinha, dançar no quintal cheio de plantinhas,  dançar escondida num quarto e pular bem muito em cima da cama e me esconder no guarda-roupa. E havia um quintal na escola para eu esparramar minha “selvageria”. E, vez por outra, havia uma estrada com o vento esvoaçando e embaraçando meus cabelos. E o luar do Sertão.

As teorias e categorias analíticas vieram depois, um pouco mais tarde. Todavia, foi também a partir delas e junto com elas que fui compreender meu vínculo visceral com as “coisas” aparentemente invisíveis e experiências bem concretas como me relacionar com plantas e outras espécies.

Ainda, nestes percursos, fui descobrindo que existia num corpo. Porque durante algum tempo a mais-valia alienou meu corpo de uma maneira absurda. Precisou ele reagir como se fosse um ente fora de mim sendo eu mesma.

Descobrir e redescobrir um corpo de mulher foi importantíssimo para a tessitura dos sentidos de minha existência e do que pude ser e fazer até aqui. Por isto quando escrevo, o faço com este corpo-tinteiro feminino.

Nos próximos dias, vou entrar no meu próprio labirinto, e deste lugar tentar compor um horizonte... E, nessas horas lembro muito de outros labirintos que percorri... E peço emprestado a Ariadne um fio para poder seguir tecendo os rizomas destes caminhos e descaminhos dos meus passos.

 *Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 06 de junho de 2025.