Essa semana, no auge da minha infelicidade, eu vi um sorriso no rosto de duas crianças habitantes das ruas de João Pessoa. Apesar da dor e abandono das crianças da etnia Warao que ficam nas ruas e semáforos da cidade, eu me senti amparada por aqueles sorrisos, que nem eram dirigidos a mim.
Confesso que a vontade que tive era de ficar ali mesmo sentada naquela rua junto das crianças. Deixar tudo, parar o tempo. Nos congelar no instante daqueles sorrisos milagrosos, inocentes da maldade humana.
O mal é tão sutil e drástico.
Nunca conversamos muito sobre como a maldade nos afeta. Sentimos as dores, o adoecimento, a falta de energia, a angústia, as ansiedades, o pânico. Puxamos pouco os fios para entender como tudo começa.
Na sabedoria popular, há um ditado que quem canta seus males espanta. Hoje, até as músicas parecem mergulhar num fosso de perversidade. Outro dia fui a uma aula de dança de uma academia, e não foi surpresa, o repertório era avassalador. Não era uma questão de gosto musical. Era compreender que tudo ali contido era muito degradante e violento.
Tentei abstrair. Pensei: faz de conta que você está fazendo pesquisa de campo para uma etnografia; observa e vive com lentes antropológicas; e não entra na lógica violenta das letras das músicas.
Passei uma hora me fazendo de doida. E depois da experiência antropológica, fiquei uma boa parte do tempo pensando naquela violência sonora. Claro que não voltarei aquele tipo de “aula” onde se reifica o lugar de coisa e de passividade diante do ato violento. A vida, apesar dos desafios, oferece algumas escolhas e rotas de fuga.
E eu ainda estou no íntimo vendo aqueles dois meninos indígenas, bem pequeninos, sorrindo um para o outro. Esse sorriso me afaga. Entre as crianças, havia uma mãe sentada a também observar. Será que a felicidade é a menor fração de segundos? Não sei.
Apenas sei que tudo o que eu mais queria naquele instante era apagar tudo que tinha que fazer e ficar em suspenso ali mesmo. Não pude, porque estava em trânsito, mas ancorada nas responsabilidades.
Faz um tempo enorme que não sou irresponsável. Até nem lembro mais quando foi que isso aconteceu. O senso do dever é uma corrente de contenção imensa. Talvez por causa disso existam muitas existências soterradas mundo à fora.
Caetano canta lindamente “gente é pra brilhar, não para morrer de fome”... “Gente quer comer, gente quer ser feliz. Gente quer respirar ar pelo nariz. Não, meu nego, não traia nunca essa força, não. Essa força que mora em seu coração”.
Só a imensidão da vida e toda a sua exuberância — que não cabe no vil metal — faz desenterrar o esplendor da “vida, doce mistério”.
Quando num milagre meu olhar encontra o olhar daqueles curumins eu reencontro algum milagre num dia duro e, diante da crueldade da exploração daquela mãe e seus pequeninos.
Por isso estou buscando em algum lugar recuperar a minha voz que se escondeu em algum lugar em mim. A imensidão do silêncio vai soltando minha alma aos pouquinhos. Assim como o vento do seu jeito lindo consegue fazer dançar a pipa nas mãos de crianças e a vida faz desabrochar os curumins na selva de pedras.
E é assim, de um jeito invisível e curioso, que a força daqueles olhinhos puxados que sorriam um para o outro, alheios a qualquer mal, acariciaram ali minha existência.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de julho de 2025.