Eu acho muito lindo a gente se perder na linguagem, deixar-se desaguar pela criatividade dos sentidos, por um pertencimento profundo dos modos de dizer e não dizer as palavras e de significar o mundo. Talvez por isso, a despeito de algumas imagens estereotipadas da novela Guerreiros do Sol, produzida pela Rede Globo para o streaming, eu encontro encantamento na sonoridade do nosso sotaque que já foi tão maltratado por experiências horríveis de apropriação, e por que não dizer de deturpação cultural.
Falar sobre o Nordeste é complexo, tendo em vista o histórico do país em criar um imaginário violento sobre nós, que corroborou diferentes modos de opressão de nosso povo. Considero que foi muitíssimo importante o debate trazido pelo querido historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, no livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes — “Um campo de produção histórica do imaginário social”.
A representação do Nordeste na indústria cultural por anos e anos seguiu produzindo um tipo de lugar encarcerado em signos não muito interessantes, corroborando inúmeras vezes práticas de racismo e xenofobia contra nós.
Guerreiros do Sol pega o tema do cangaço e liquidifica. Cangaceiros 3.0. Assim como as séries produzidas para circular pelo streaming que vão buscar, nas culturas e saberes locais, um pouco de alicerce para as tramas.
Eu falo dessas coisas, porque não dá para olhar para a narrativa e fazer de conta que não vejo as contradições da proposta. Por outro lado, a presença de um elenco nordestino e bastante diverso faz explodir a representatividade do universo linguístico do povo do Nordeste e do Sertão em particular. A linguagem sertaneja é uma galáxia inteira embrenhada dentro da gente.
A literatura brasileira feita por autores e autoras do Nordeste buscou, e talvez ainda busque, levar em consideração a polissemia e o hibridismo deste modo de dizer e de se expressar no mundo. Lembro demais que A Bagaceira trazia um glossário apresentando um pouco o universo das expressões.
E o que dizer da linguagem entranhada em Clarice Lispector ecoando em Macabéa, ou seria o contrário, em A Hora da Estrela?
Observando o trabalho artístico da telenovela que circula não mais por um meio massivo, mas por uma lógica de segmentação da produção cultural, penso sobre a realidade brasileira. Há pontos significativos da crítica social sutilmente presente no texto.
A lógica armamentista do passado tem sido reeditada no belicismo presente na política brasileira. E não há nada de romântico nos fatos dos anos 1920, 1930, tão pouco nos do país de hoje.
Há inúmeras camadas e rizomas na composição de Guerreiros do Sol, fazendo com que muitos temas sejam revisitados, como a presença das mulheres no cangaço. Tema já trabalhado por diferentes pesquisadores e pesquisadoras e por jornalistas também, a exemplo do livro Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, da jornalista Adriana Negreiros.
Outra questão que emerge é a homoafetividade no cangaço e no mundo rural. Mais que construir personagens como um nicho relevante da audiência, é significativo romper com omissões e silenciamentos históricos.
Como sertaneja, vivi num espaço e vizinhança com muitos casais LGBTQIAPNb+, claro que num tempo social sem as siglas. Na minha rua, nunca presenciei casos de homofobia, porque a vizinhança se queria bem e se respeitava muito.
Mas estava lá o não dito em relação à afetividade que não era claramente revelada, que ficava nas entrelinhas da vida cotidiana.
No front da vida sertaneja, as palavras eram quase sempre sentenças — fortíssimas, cruas, bombásticas e desestabilizadoras para se referir a escolhas que fugissem aos padrões, quaisquer que fossem.
E, paralelo a isso, a vida sempre pulsou avassaladoramente na Caatinga. As pulsões de vida e morte se engalfinhando. E a poesia, sim, essa ainda hoje teima em florescer.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de julho de 2025.