Anos noventa. Estava com um primo, mais novo que eu, na rodoviária, esperando ou a Baleia (apelido carinhoso do ônibus que ia e voltava levando estudantes e funcionários da UFPB de Bananeiras para Solânea), ou uma bandinha (o transporte alternativo que se chamava assim porque os passageiros tinham que sentar sempre de banda, para caber mais gente no carro) ou mesmo uma carona (porque pegar carona entre as duas cidades não era tão incomum: quase todo mundo ali se conhecia, e a ladeira que até hoje separa as duas localidades não chega a durar uma viagem de cinco minutos).
Um homem, entre seus trinta ou quarenta anos, se aproximou de nós, tentando puxar conversa. Ele perguntou se estávamos sozinhos, se queríamos carona, e embora eu já tivesse aceitado várias ofertas do mesmo tipo, de rostos conhecidos, aquele desconhecido não me inspirou muita confiança. Ele percebeu e disse que sabia quem eram meus pais, o que era bastante plausível, e que trabalhava inclusive com eles, o que não era de se duvidar.
“Seu pai é o…”
“Beto…”, eu respondi, achando que dizendo o nome ele podia confessar que tinha se confundido.
“Isso! E a sua mãe, também…”, ele disse, estalando os dedos.
“...Sinha”, eu respondi, ao que ele concordou.
“Exato… É que eu conheço eles pelo nome e não pelo apelido.”
Em algum ponto as incongruências começaram a aparecer: ele achava que meu primo era meu irmão, e eu disse que meus dois irmãos estavam em casa, não tinham nos acompanhado no passeio.
“É mesmo, só são vocês três…”, ele se corrigiu. “É que conheci vocês muito pequenos”, ele disse. “Eu mal te reconheci. Quando vi, já tá um homão”.
Acho que foi quando ele começou a se referir a meus dois outros irmãos como meninos que eu comecei a desconfiar da mentira. Minha irmã tinha acabado de nascer, se ele realmente conhecesse minha família saberia disso.
Ele olhava constantemente para os lados e, numa hora em que se virou, tirei todo o dinheiro que tinha no meu bolso e entreguei na mão do meu primo. Disse que ele comprasse duas passagens. Ele tentou argumentar, disse que tínhamos arranjado uma carona, e eu o empurrei, gesto que não passou despercebido ao homem.
“Eu levo vocês”, ele repetiu.
“Sinto muito”, eu disse. “Já pedi ao meu primo que comprasse as passagens”.
Lembro que o semblante dele se modificou. Ele chegou mais perto de mim e perguntou:
“Quantos anos você tem?”, ele questionou e eu respondi.
“Você já fez… sabe… aquilo?”
“Aquilo o quê?”, eu devolvi a pergunta, torcendo para que o dinheiro que dei para o meu primo desse para duas passagens
“Aquilo que se faz com outra pessoa?”
Eu apenas neguei com a cabeça.
“Mas você já fez sozinho?”
Eu sentia o frio na barriga. Eu sabia que aquela conversa era inapropriada, mas as pessoas iam e vinham no terminal, o mundo parecia o normal de sempre.
“Eu…”
“Quando você faz, sai… aquilo?”
Meu primo se aproximava com o semblante contrariado. O dinheiro não dava. Ou era a baleia ou o alternativo, ou aceitar a carona daquele estranho
“Se você fizer em mim eu pago”, ele disse. E meu primo sentou ao meu lado, ainda sem entender minha palidez e o meu corpo tremendo.
O homem então se transformou de novo.
“Vamos fazer assim, eu vou ali buscar o carro e levo vocês.”
Meu primo festejou, inocente, e eu forjei um sorriso porque sabia que seria minha última chance. Ele caminhou alguns passos rumo ao estacionamento da rodoviária e eu suspirei.
Apenas disse a meu primo:
“Corra junto comigo. Corra como se sua vida dependesse disso”.
Ele obedeceu. Atravessamos a rua. Chegamos à praça. Nessa época ainda existia o Bar do Seixo, que tapava a visão do outro lado. Nos aproveitamos disso. Peguei a ruela do antigo cinema, que era via única, e contramão para quem viesse. Chegamos à rua principal. Continuamos a correr, às margens do córrego, passando pelo meu colégio, pelo clube, pelo campo do Atalaia. Cruzamos a guarita da universidade. Eu não olhava para trás, na minha cabeça ele tinha entrado no carro e estava nos seguindo. Só me senti seguro quando chegamos no campus. Já era fim do expediente e meus pais não deviam estar mais lá. Tinhamos ainda uma outra ladeira para enfrentar até chegar em Solânea. Mas sabíamos de um atalho. Só aí expliquei a situação ao meu primo.
Tínhamos corrido pouco mais de dois quilômetros, mas para nós parecia uma maratona. Chegamos em casa esbaforidos, e prometemos não contar nada a ninguém.
Não sei exatamente o porquê. Talvez, porque eu me sentisse culpado: por não ter conseguido proteger o meu primo de outra forma que não fugindo, por ter, talvez, provocado aquilo: eu era uma criança afeminada, eu tinha vergonha de não entender aquelas coisas, de não conseguir reagir a elas de outra maneira, de ter me sentido em perigo, mesmo com toda uma cidade que me conhecia à minha volta, acontecendo ao redor daquela rodoviária.
Todas as coisas verdadeiramente perversas começam na inocência, diz Hemingway, e na minha inocência eu achava que o mais perverso disso tudo era que, se contássemos essa história pra alguém, ninguém acreditaria.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de dezembro de 2024.