Não faz tanto tempo que a carteira assinada ainda era sinônimo de estabilidade. Entretanto, hoje, ela divide espaço com o empreendedorismo e seu ideal de liberdade, o “plano B” para quem já não encontra espaço no mercado formal. Os números mostram bem essa nova realidade: segundo a pesquisa do Datafolha, realizada em 2022 e 2025, 59% dos brasileiros já preferem o trabalho autônomo, índice que dispara entre os jovens de 16 a 24 anos. Para o sociólogo Estevam Dedalus, essa mudança de mentalidade não é fruto do acaso, mas reflexo de um cenário que favorece a precarização do trabalho, a desmontagem dos direitos trabalhistas e o reforço de uma cultura que romantiza o esforço individual. “É uma espécie de sonho mágico de que empreender vai te dar um futuro”, disse o especialista à Rádio Tabajara.
A mudança de rota observada no mundo do trabalho tem raízes profundas, segundo o sociólogo. De um lado, faltam empregos estáveis com perspectiva de crescimento, mesmo em um cenário de recordes de carteira assinada. “Empregos formais de boa qualidade estão cada vez mais escassos”, observa Estevam, lembrando ainda que, fora do setor público, o trabalhador já não consegue mais planejar sua carreira a longo prazo.
Do outro lado, existe um apelo simbólico ao empreendimento como solução para as contradições do mercado e atalho para o sucesso. O sociólogo lembra que, atualmente, muita gente é atraída pela narrativa de que, ao ser seu próprio chefe, qualquer indivíduo consegue prosperar.
Prosperidade
Mas essa lógica não se limita às redes sociais, nos quais empreendedores exibem suas rotinas de prosperidade e coaches ensinam como enriquecer em poucos passos. O problema, segundo o sociólogo, é que essa mentalidade também vem sendo incorporada ao ambiente escolar. Com a reforma do Ensino Médio, disciplinas tradicionais e com base científica, como Física e Matemática, vêm perdendo espaço para conteúdos focados em empreendedorismo.
“Algum tempo atrás, em escolas do Rio de Janeiro, era oferecida a disciplina ‘brigadeiro caseiro’, por exemplo. Basta olhar os currículos depois da reforma. Você tem, agora, entre as disciplinas oficiais, aulas sobre empreendedorismo”, comenta. Para ele, essa mudança aponta para uma formação adaptada à informalidade, em um país que já não gera empregos de qualidade.
Para além das escolas, a precarização do trabalho também se consolidou nas leis. Quando a instabilidade vira regra e os salários encolhem, o apelo ao empreendedorismo tende a crescer, segundo ele explica. “Essas reformas deixaram mais difícil a experiência de continuidade dentro do emprego”, pontua Estevam, ao comentar os efeitos das reformas trabalhista e da Previdência. E, sem perspectivas concretas, o trabalhador acaba sendo seduzido pela promessa de enriquecimento que o empreendedorismo proporciona, diante de um cenário de exaustão, no qual se trabalha muito e ganha-se pouco.
É por conta desses fatores que a juventude tem abraçado o empreendedorismo cada vez mais cedo — estimulada, também, pela ideia de que “é possível conquistar as coisas a partir do seu esforço individual”. Entretanto, como o sociólogo bem alerta, a sociedade precisa compreender que o sucesso depende, também, de uma série de fatores que vão além da força de vontade. Tem a ver com Educação, Ciência e Tecnologia. “Em um país como o nosso, que caminha para um processo de desindustrialização, sem investimento em Educação e tecnologia, é impossível a geração de empregos de qualidade”, analisa.
Desindustrialização é a raiz do problema
Durante a entrevista à Rádio Tabajara, o sociólogo Estevam Dedalus citou o exemplo da Suíça para ilustrar como a complexidade econômica impacta diretamente a qualidade dos empregos e os salários. “Lá, um garçom ganha cerca de cinco mil euros”, destaca. E por que isso acontece? Segundo ele, quando o sistema produtivo é sofisticado, o salário médio sobe, o que eleva a renda até mesmo nos serviços mais básicos. “Se o rico ganha, o pobre também acaba ganhando”. No Brasil, ocorre exatamente o oposto: com uma economia desindustrializada, baseada na exportação de matérias-primas, o setor de serviços mantém-se barato. “Aqui, em João Pessoa, eu tenho certeza de que, em Mangabeira, você corta o seu cabelo por R$ 20”, comenta. E resume a nossa realidade com uma música: “o de cima sobe e o de baixo desce”.
Embora seja comum ver nas redes sociais gente demonizando o trabalho com carteira assinada, o problema, segundo Dedalus, não está na CLT em si, mas no que foi feito dela nos últimos anos. Mesmo presidentes de grandes empresas, ou figuras como Neymar, têm contrato formal, o que comprova que o regime não é o vilão. A questão, aqui, é a correlação equivocada entre CLT e subemprego, em razão dos baixos salários praticados no mercado brasileiro. “Basta analisar o custo de vida. Quando é que você, com R$ 1,8 mil e filhos, consegue pagar aluguel, água, energia, telefone, alimentação e transporte? A situação fica muito complicada”, reflete. E se o salário não cobre nem o básico e o esforço consome a vida inteira, o “plano B” vira uma “saída” para quem deseja trilhar outro caminho.
Para o sociólogo, de olho no futuro, o país só terá alternativas reais de crescimento se investir em um projeto nacional de desenvolvimento. “A tendência é que a gente aumente o número de desempregados e o país continue relativamente pobre, sem grandes oportunidades.” Por isso, nas palavras de Estevam Dedalus, é urgente repensar o Brasil, tendo em vista que a automação e a inteligência artificial devem ampliar ainda mais as desigualdades por aqui. E empreender não pode ser a única resposta para esse cenário.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 6 de julho de 2025.