A história de seu nascimento daria filme — como já deu. “Olga” (2004), filme de Jayme Monjardim baseado na obra de Fernando Morais, passeia sobre a vida de Olga Benário Prestes, e não poderia deixar de tratar de sua prisão e deportação para a Alemanha nazista. Naquele momento, ela gestava a vida de Anita Leocádia Benário Prestes, sua filha com o revolucionário Luís Carlos Prestes, historiadora hoje com 88 anos de idade. Nascida em meio a presídios, Anita, ainda criança, precisaria de campanha internacional para voltar à família no Brasil, e conheceria o pai apenas aos sete anos. Ao longo da vida, tornou-se fundamental historiadora da Coluna Prestes e do pai, mas também crítica das esquerdas no Brasil e no mundo. No mês de deportação de sua mãe para a Alemanha, o programa Tabajara Conta a História, com participação d’A União, revisitou com Anita suas visões sobre o contexto global de regimes autoritários e imperialistas, a crise do capitalismo e as lacunas e erros da história dita oficial.
A entrevista
Esses ecos autoritários e nazifascistas do passado com a atualidade ecoam aos quatro cantos do mundo. Qual a sensação disso em ti? Há um pouco de déjà vu de esforço desprendido por tantos e em especial sua família? Há uma sensação de que episodicamente isso teria sido em vão?
Não, de jeito nenhum. A luta é longa e difícil. Não acho que o que está acontecendo hoje é repetição do passado. Sigo muito uma das teses importantes do teórico do marxismo e revolucionário russo [Vladimir] Lênin de que, para entender uma situação histórica concreta, é necessária análise concreta da situação concreta. Então, as situações e os acontecimentos são diferentes. Um aspecto ou outro superficial pode lembrar. A luta é longa, feita de vitórias e derrotas. Para ter vitória final, é demorado, complicado, tem muitos fatores, então eu acho que não foi nada em vão. Tudo isso são forças se acumulando dentro disso tudo, acontecendo derrotas também, não só a vitória. Por isso, às vezes, tem períodos longos que são de derrota, realmente.
- Pegando carona, quais seriam esses principais desafios da resistência hoje ou além? Onde estariam os pontos de diferença e semelhança entre essas épocas?
Não, eu acho que hoje o que nós temos, não só no Brasil, é um fenômeno bastante mundial: as forças que se dizem de esquerda não se revelaram capazes até agora de elaborar uma proposta concreta de transformação revolucionária do capitalismo. O capitalismo está em uma crise muito séria, necessitando ser substituído pelo regime socialista. E “O Capital”, de [Karl] Marx, explica bem. Na medida em que a situação no mundo mudou muito, hoje em dia está faltando alguém que, como líder ou grupo, elabore proposta para essa transformação do mundo. E, como isso está difícil, grande parte das ditas esquerdas, inclusive no Brasil, desistiu de caminhar para o socialismo e estão procurando dar uma melhorada no capitalismo. Isso não funciona, isso leva a derrotas cada vez maiores, e derrotas levam a que os setores populares desiludidos com essas esquerdas, com essas forças progressistas, apelem para quê? Para o autoritarismo, para a repressão e para o fascismo. Acho que a crise muito séria do capitalismo vai acabar propiciando que surjam essas forças capazes de apresentar, de elaborar e de conduzir um processo efetivo de transformação revolucionária, sair do capitalismo e passar para o socialismo. A gente vê aí a polarização econômica, cada vez mais grupos trilionários acumulam a maior parte da riqueza produzida no mundo e as grandes massas trabalhadoras com dificuldades crescentes.
- Esses comportamentos mais extremistas, essas interferências na soberania de outros países, vindo de países como os próprios Estados Unidos e a Rússia. É uma crise do capitalismo e há brecha para mudanças nessa situação ou a gente está vivendo um cenário um pouco tenebroso para o nosso futuro?
É um momento muito difícil para as grandes massas. Veja a população de Gaza, morrendo, exterminada; é uma das mais sacrificadas no momento no mundo. Mas isso não é o futuro, isso vai se superar. O capitalismo está em crise econômica, em primeiro lugar, mas não só. Crise política, social, quer dizer, as coisas não funcionam mais como funcionavam. Isso leva a uma desigualdade social crescente. São os trilionários acumulando riqueza gigantesca e as grandes massas populares cada vez com uma parcela reduzida do que se gera no mundo. Isso vai levar a um momento em que surjam propostas de transformação revolucionária, caminhar para o socialismo. Acho que isso é inevitável. Agora, quando vai acontecer? Como vai acontecer? Não dá para adivinhar, mas a tendência vai ser essa. Quer dizer, as pessoas não vão se deixar passar fome eternamente. Vai haver rebeldia, vai haver quem consiga equacionar a solução para os dias de hoje, como fez Lênin na virada do século 19 para o 20. Ele não repetiu simplesmente o que o Marx tinha dito. Ele conseguiu estudar e conhecer profundamente a situação do mundo e da Rússia na época e propor uma forma de revolução que deu certo, foi vitoriosa em 1917. Então, isso está faltando. Mas eu acho que vai surgir porque as condições existentes materiais estão a exigir isso. A saída é só com transformações profundas, mas isso não acontece automaticamente, tem que surgir as forças sociais capazes de conduzir esse processo.
- Queria saber como você, filha de Olga Benário Prestes, vítima do nazismo alemão, lida vendo esse discurso da extrema direita ganhar mais propulsão e atingindo as minorias. Como isso chega para você nestes momentos atuais?
Chega normalmente. A repressão tem várias formas. A Olga, minha mãe, foi um caso, mesmo na Alemanha, em que foram assassinadas milhões de pessoas, que ficou bastante conhecida pelo fato de ser a esposa do Prestes. Inclusive, ela foi extraditada do Brasil junto com outra companheira alemã que estava aqui, também revolucionária, a Elise Ewert. E quase ninguém fala na Elise Ewert, por quê? A Elise Ewert não foi menos heróica do que a Olga. Inclusive foi barbaramente torturada aqui no Brasil. O Prestes e a Olga não foram fisicamente torturados, porque o Prestes já tinha um prestígio mundial muito grande. Era um Cavaleiro da Esperança, muito conhecido nesse período, 1935, 1936, na Europa, nos Estados Unidos. Havia um movimento grande, inclusive de cartas, de telegramas, pressionando o Getúlio para libertá-los, para não torturá-los, então seria muito desgastante para o governo do Getúlio torturar o Prestes e a Olga. O Prestes sempre dizia que a forma que Vargas encontrou de torturá-lo foi justamente a extradição da Olga. Foi a tortura psicológica à qual ele foi submetido. Mas repressão houve em massa. Eu até tive muita sorte porque eu fui resgatada, afinal das contas, graças a uma grande campanha internacional que na época ficou conhecida como “Campanha Prestes”. O meu destino, como de outras crianças filhas de prisioneiras, na Alemanha, teria sido um orfanato nazista em que a criança virava um número, perdia o nome. Isso mesmo que sobrevivesse depois; a maior parte morreu, mas, mesmo que sobrevivesse, como é que a família iria localizar essa criança? Por isso, eu costumo dizer que eu sou filha da solidariedade internacional. Parece que, às vezes, falam de uma maneira que parece que só a Olga foi vítima. Sem dúvida, ela foi vítima, foi uma grande perda para o movimento e para nós, para a família, principalmente para o meu pai. Mas muitas outras famílias e muitos outros filhos e filhas perderam pais e mães nessa luta.
- Saiu a quarta edição do seu livro “A Coluna Prestes” no ano passado, centenário da Coluna. Por que é tão importante ainda pensar sobre, revisitar a Coluna Prestes e trazer o legado de Prestes para o que a gente está vivendo?
A burguesia mundial e a brasileira pagam muito bem seus intelectuais para produzir uma história falsificada. Isso não é só no Brasil, é no mundo inteiro. Quer dizer, a história oficial, que inclusive é apresentada às crianças nas escolas, uma grande parte é falsificação, inclusive sobre a Coluna e sobre o Prestes. O Prestes, na medida em que, em 1930, se recusou a agir de acordo com os interesses das oligarquias dissidentes, Vargas, mineiros, que fizeram o movimento de 1930, e realmente derrotaram aquele tipo de política que existia, a chamada “política dos governadores”, a política oligárquica, o Estado oligárquico, mas quem assumiu depois foram grupos das classes dominantes também. Na medida em que Prestes, que, na época, tinha um prestígio muito grande, não se prestou a agir de acordo com esses interesses, passou a ser o inimigo geral das classes dominantes no Brasil. Então, o que se escreve e o que se diz de mentiras e falsificações sobre o Prestes, sobre os comunistas, é uma imensidão.
- Como filha e historiadora, ou como historiadora e filha, o que você elencaria de principais pontos de diferença entre o Prestes da Coluna Prestes e o da Intentona Comunista, uma década depois, ideologicamente, em personalidade?
Esse termo, “intentona”, eu me recuso a usar, porque foi inventado pela direita justamente para depreciar o movimento. “Intentona” é um termo depreciativo. Eu falo o que foi corretamente: foram levantes antifascistas que aconteceram em novembro de 1935. “Intentona”, inclusive, na época, nem existia essa palavra, foi adotada pelo governo Vargas um ano depois, para depreciar o movimento. Mas isso é tão repetido que até pessoas de esquerda falam em “intentona”, lamentavelmente. É o que é largamente difundido. Outro exemplo de história oficial elaborada pelos intelectuais a serviço dos interesses dominantes para depreciar movimentos populares. Eu me refiro baseado no que era a programação desse movimento: os levantes antifascistas de novembro de 1935. Eles tinham caráter antifascista, contra o fascismo mundial e contra o fascismo no Brasil, concretamente a Ação Integralista Brasileira, do Plínio Salgado, que estava perturbando bastante a situação no Brasil. Mas o Prestes dessa época é muito diferente do Prestes da Coluna. Quando ele termina a Coluna e vai se dedicar a estudar, adere ao marxismo e ao comunismo. Então, em 1930, ele já é um comunista, tanto que eu tenho até um livro em que eu denomino a trajetória do Prestes em que ele começa como tenente patriota revoltado com a situação existente do Exército e do Brasil, se transforma em revolucionário, que luta de armas na mão durante esse período da Coluna, e, depois, a partir dessa participação como revolucionário, ele chega a se transformar em comunista. E a partir de 1929, 1930, é uma liderança comunista até morrer, em 1990. O resto da vida, ele é um comunista. Em 1935, ele já é um comunista que tinha sido aceito no Partido Comunista, e visava os objetivos da revolução caminhando rumo ao socialismo e ao comunismo. Então é totalmente diferente o Prestes de 1935 do Prestes do período da Coluna.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de setembro de 2025.