Aos 90 anos, a paraibana Luiza Erundina de Sousa (Psol-SP) anunciou um novo projeto: o movimento Sementes da Esperança. A ideia é estimular o exercício direto do poder político por cidadãos, a partir da criação de espaços de diálogo nos ambientes de trabalho, nas comunidades e nas instituições de ensino, para discutir os rumos do país. A nova iniciativa foi um dos pontos do seu discurso na cerimônia em que recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no dia 25 de julho.
A comenda veio 56 anos depois de a instituição rejeitá-la por ser classificada como subversiva pela Ditadura Militar (1964-1985). O Departamento de Ciências Sociais da UFPB perdeu uma professora, que se tornou a primeira mulher eleita para chefiar o Poder Executivo do maior município brasileiro, a cidade de São Paulo (SP).
Esses dois episódios de sua vida quase centenária seriam suficientes para classificá-la como “imparável”, como se diz modernamente. Mas não é só isso. Nascida em Uiraúna, no Sertão paraibano, Erundina é a sétima de uma dezena de filhos de um casal de agricultores analfabetos. Amparada por uma tia e uma prima, ela morou em Patos, Campina Grande e João Pessoa para vencer a pobreza por meio da educação. Valente e fraterna na mesma medida, a assistente social renunciou ao sonho de ser médica para garantir às irmãs mais novas, ao menos, o Ensino Médio da época.
Ao migrar para São Paulo, conseguiu ser aprovada em concursos públicos. Antes de ser prefeita, foi eleita para o parlamento municipal e estadual. Também foi ministra no Governo Itamar Franco. Atualmente, está no sétimo mandato consecutivo como deputada federal pelo estado mais rico do país.
Depois de Erundina receber a mais alta honraria acadêmica, o Jornal A União entrevistou a parlamentar para saber se o novo projeto implica a desistência da atuação partidária, ouvi-la sobre o atual momento do Brasil e saber como ela vislumbra a próxima fase da democracia brasileira.
A entrevista
Na cerimônia de recebimento do título de Doutora Honoris Causa, a senhora disse que tem um novo projeto que envolve potencializar o poder popular. Poderia detalhar isso?
Lançamos um manifesto, lá na PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo, com mais de 500 pessoas da sociedade civil, engajadas na luta pela mudança no país. A gente entende que a crise política do Brasil se deve à ausência do poder popular. Quer dizer, a democracia representativa não é suficiente. Se ela não tiver a contrapartida do poder popular, que é quem concede o poder institucional pelo voto soberano nas eleições, não há solução possível de mudança política em nenhuma sociedade. Então, nós temos que resgatar a força do povo, não só numericamente, mas qualitativamente, porque, numa democracia, o soberano é o povo. Não é o deputado, o presidente, o prefeito; é o povo o soberano. Então, o outro representa, no Legislativo e no Executivo, o poder originário, que é o poder do povo. E o povo não sabe disso. Já soube disso há algum tempo atrás.
Quando as pessoas tiveram essa noção?
No período de resistência da Ditadura Militar e no processo de redemocratização, a força do povo, dos movimentos sociais, do movimento popular e do movimento sindical era a legitimidade de democracia numa sociedade verdadeiramente democrática. Isso passou. Temos eleições a cada dois anos, mas a situação não muda. Vai mudar só no dia em que o poder se perceber como fonte do poder, se assumir e exercer esse poder. Mas o povo não sabe, o representante dele não reconhece isso, muito menos contribui para que ele descubra, porque, no dia em que o povo se descobrir como força e poder, vai exercer essa força e poder, em detrimento, inclusive, de alguns desses representantes que, lamentavelmente, não merecem a confiança do poder popular.
Como essa ideia se traduz na vida prática?
No espaço local, criar núcleos de base no local de moradia e no local de trabalho. O PT [Partido dos Trabalhadores], numa época, já foi isso. Criava núcleos de base nos locais de moradia, nos locais de trabalho e nos sindicatos e legitimava a criação de uma ferramenta que o povo usou — o partido que ainda hoje existe, mas sem a força originária que ele tinha, pela presença do povo no exercício desse poder. Temos que construir uma base popular de exercício de poder real, seja na eleição, seja para derrubar gente que não está servindo depois da eleição.
Conselhos de participação popular e conferências temáticas — como as de Saúde, as dos Direitos da Criança e do Adolescente, entre outras — são instrumentos para a população exercer a democracia participativa?
São formas, mas não o suficiente. Se não houver o exercício direto do poder pelo usuário do voto, o dono do voto, o dono do poder, o originário do poder, [não adianta]. Mas os partidos não querem saber, nem reconhecem. Tem eleições, se elegem e reelegem, não muda nada. Só vai mudar no dia em que o povo se perceber como força, originário do poder e se mobilizar para exercer esse poder, se organizando em seus bairros, no local de trabalho, no setor que ele representa.
Também existem outros meios de participação previstos na Constituição.
Isso. A Constituição prevê mecanismos de democracia direta: plebiscito, referendo e projeto de lei de iniciativa popular. O Brasil só tentou fazer um plebiscito e um referendo, em 1963 e 1993, o que não mudou nada. [Os eleitores brasileiros também opinaram em um referendo nacional sobre a proibição de venda de armas de fogo no Brasil, em 2005. A maioria reprovou a mudança no artigo 35 do Estatuto do Desarmamento]. E projetos de lei de iniciativa popular foram 10, mas todos via deputados. O povo fazia a listagem de votantes, mas, em última instância, quem fazia tramitar a matéria era um deputado. Portanto, as matérias não eram um projeto de lei de iniciativa popular. O artigo 14 da Constituição prevê plebiscito, referendo e projetos de iniciativa popular, mas não são executados. O povo tem que fazer isso valer, porque é uma conquista. Estamos dedicadas a esse esforço.
Esse novo projeto significa que a senhora não vai se candidatar nas próximas eleições?
Não, é possível conviver. Não que eu esteja decidindo que eu vou ser candidata. Não vivo de candidatura em candidatura. Vivo em cada tarefa que o povo me confia, em cada momento da história. Em um dado momento, o povo resolve que me quer em algum lugar e me leva para esse lugar. Não vou por vontade própria. Então, se o povo, num dado momento, quer eu que assuma outra tarefa, eu vou lá e assumo. Só tem sentido minha vida, esse tempo de vida que ainda me resta, à medida que eu corresponder à expectativa popular em relação ao meu papel junto a ele [ao povo], que é a democracia direta, a democracia participativa, que é a verdadeira democracia. Então, temos que construir a educação de base, a educação política do povo.
Qual sua avaliação sobre o momento político do Brasil?
[É um momento] gravíssimo, mas também é uma oportunidade, nos momentos extremos de crise política, de se promover mudanças. O povo brasileiro tem que se empoderar, se perceber como aquele que vai garantir a soberania popular. A democracia brasileira custou muito ao nosso povo. Ainda tem 434 desaparecidos políticos, que foram identificados pela Comissão Nacional da Verdade [CNV], e, até hoje, não se deu um passo para se cumprir uma das 29 resoluções do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
O que se pode fazer para mover o Estado brasileiro no sentido de cumprir as resoluções?
Estou recriando a subcomissão Memória, Verdade e Justiça, na Câmara dos Deputados, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos, para retomar a implementação das resoluções que saíram da Comissão Nacional da Verdade e dar eficácia ao resultado do trabalho da comissão. Senão, não aconteceu nada. Os desaparecidos políticos estão desaparecidos, os crimes de lesa-humanidade não foram reparados, a Justiça de Transição não se fez. É muita coisa para se fazer. Por isso, essa quantidade de gente entusiasmada, generosa, com energia, sonhando, querendo mudança tem que nos ajudar a sermos ousados para fazer a política com “P” maiúsculo. Não eleição atrás de eleição, que elege ou reelege os mesmos para reproduzir as mesmas práticas viciadas de um Congresso Nacional, ou mesmo de Poderes Executivos, sem compromisso nenhum com o originário do poder, que é o povo.
Existe uma iniciativa para tentar anistiar pessoas que ainda nem foram condenadas, mas respondem judicialmente por tentativa de golpe de Estado, em 2022. Esse movimento incluiria também os responsáveis pelos atos de 8 de janeiro de 2023. Isso vai ter resultado?
São iniciativas fracas, sem legitimidade, porque não contam com o apoio popular. O apoio popular tem que ser reconhecido, porque, sem ele, não tem democracia.
*Entrevista publicada originalmente na edição impressa do dia 03 de agosto de 2025.