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violência contra crianças

Cresce o número de casos na capital

publicado: 27/10/2025 09h05, última modificação: 27/10/2025 09h05
Segundo informações do Conselho Tutelar, volume de denúncias deste ano já supera os registros de 2024
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Ocorrências de aliciamento sexual de menores subiram 50% em todo o estado, em relação ao ano passado; já os episódios notificados de estupro de vulnerável aumentaram 8,3% | Ilustração: Bruno Chiossi

por Nalim Tavares*

O cuidado com as crianças é o primeiro passo para a construção de uma sociedade melhor. Ao garantir que elas tenham acesso à educação, à saúde e a um lar seguro e afetivo, investe-se em um futuro composto por adultos que confiam em si mesmos, com autoestima, empatia, habilidades sociais e segurança para enfrentar desafios. Entretanto, os casos de violência vêm tornando mais distante esse mundo melhor, e uma análise do número de denúncias realizadas junto ao Conselho Tutelar paraibano sugere um aumento de violações aos menores: até o dia 21 de outubro deste ano, somente em João Pessoa, foram feitas 435 delações — marca que já supera em 92 casos a quantidade de registros do ano passado inteiro, na capital. Em todo o estado, entre as categorias das agressões, o crescimento mais expressivo é o da violência sexual.

Os dados foram extraídos do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), um banco nacional utilizado pelo Conselho Tutelar para registrar informações sobre violações aos direitos das crianças e dos adolescentes. De acordo com o órgão, na Paraíba, os casos de aliciamento sexual aumentaram 50% em relação a 2024, e os de estupro de vulnerável, 8,3%. Entretanto, ao contrário do ocorrido na capital, o número geral de denúncias feitas neste ano, no estado (632), ainda não ultrapassou o total de 2024 (711), e houve ligeira queda na quantidade de denúncias referentes à violência física ou psicológica.

Segundo o juiz titular da 1ª Vara da Infância e Juventude de João Pessoa, Adhailton Lacet, qualquer pessoa que tome ciência de uma agressão sofrida por um menor pode fazer uma denúncia sigilosa ao Conselho Tutelar, à polícia, ao Ministério Público do estado (MPPB) ou mesmo junto à Vara da Infância e Juventude, além do Disque 100, voltado a ocorrências relacionadas aos Direitos Humanos. O magistrado explica que é necessário que todos fiquem atentos porque, “na maioria das vezes, os agressores são pessoas conhecidas das vítimas, quando não são seus parentes ou alguém que exerce algum poder sobre elas, como professores, babás etc.”.

Informações do Atlas da Violência 2025, divulgado em maio, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), corroboram essa afirmação: independentemente da faixa etária, da infância até a adolescência, a violência familiar é o tipo prevalente: 67,8% das crianças com idade até quatro anos; 65,9% das que estão na faixa etária dos cinco aos 14 anos; e 48,4% dos jovens de 15 a 19 anos estavam em casa quando o crime aconteceu.

Especialista alerta para impactos da agressão

Psicóloga escolar e pós-graduada em Projetos Sociais e Políticas Públicas, Maria Vitória ressalta que “a infância é o chão em que pisamos durante toda a nossa vida”. Conforme a especialista, isso significa que todo trauma sofrido na meninez gera uma dificuldade para a vida adulta, que se agrava à medida que não é tratada com a devida atenção. Portanto, reconhecer e enfrentar a violência contra crianças, bem como acolher as vítimas, é fundamental para construir um futuro mais saudável e justo.

Vitória conta que os sinais de violência — seja ela física, psicológica, sexual ou discriminatória — estão sempre presentes, embora variem para cada criança: enquanto algumas, por exemplo, retraem-se, outras podem tornar-se hostis e combativas. “Pode ser uma criança mais calada ou mais hiperativa, mas ela vai apresentar algum comportamento que não é funcional, que vai dificultar a questão da aprendizagem e da socialização”. Outros indícios a que se deve prestar atenção são a presença de hematomas, ansiedade, preferência pelo isolamento e alterações no comportamento ou nos horários de sono.

Ainda, a psicóloga alerta que, ao crescer como vítima de violência, especialmente quando a agressão parte de alguém que devia atuar como protetor, uma pessoa pode associar afeto à dor e, assim, ter dificuldade para reconhecer que cuidar não tem nada a ver com ferir. “Quando aparece alguém que quer dar amor, ela não consegue deixar isso acontecer porque, em sua cabeça, quem ama também agride. Então é difícil receber um elogio, um presente. A pessoa não se acha merecedora”, observa. Como esclarece Vitória, a base do conceito de “eu” é formada na infância. Valores como autoconfiança, autoestima e amor-próprio, na vida adulta, dependem muito das experiências vividas e sentidas quando se é criança. Impactos sobre qualquer um desses pilares pode formar uma pessoa insegura, que tem medo de tomar as próprias decisões e encontra dificuldades para criar vínculos — ou vínculos sadios — com as outras pessoas e o mundo à sua volta.

Além disso, a especialista aponta que o leque das manifestações de violência é mais amplo do que alguns podem imaginar: não permitir que um menor socialize com outros, levá-lo a locais inapropriados, agredi-lo verbalmente ou ser omisso perante a negação de qualquer direito da criança também se qualificam como formas de violência e, inclusive, compõem categorias específicas das violações que são registradas pelo Conselho Tutelar.

A penalidade varia conforme o tipo de crime e a gravidade das lesões, e pode ser pago com multa ou detenção — que varia de meses a anos, conforme as especificidades do delito. Segundo o juiz Adhailton Lacet, é preciso que toda a sociedade trabalhe para proteger as crianças. “Família, comunidade, Poder Público, cada qual à sua maneira, para que os infantojuvenis possam se ver livres de qualquer forma de violação de direitos”, defende.

Novas legislações impulsionam o enfrentamento do crime

A comparação entre as quantidades de registros de violência contra crianças em todo o ano de 2024 e no período parcial de 2025 acende alertas no que tange à segurança e ao bem-estar dessa população: ainda que os dados disponíveis deste ano refiram-se até o último dia 21, o aumento percentual constatado nas categorias já mencionadas é notável e merece atenção.

Entretanto, é preciso considerar que tal crescimento no número de denúncias também pode estar relacionado a outros fatores, além do salto nas ocorrências. É possível, por exemplo, que as campanhas de sensibilização realizadas em João Pessoa e pela Paraíba tenham alcançado e incentivado mais pessoas a reagir diante dos casos, e que a confiança da população nos canais de denúncia esteja crescendo, o que implicaria em mais registros e menos episódios abafados ou subnotificados.

Neste ano, o combate à violência contra crianças também foi impulsionado por novas legislações, como o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital), sancionado pela Lei Federal no 15.211/2025 — a “Lei Felca”, publicada em setembro, depois que o influenciador digital Felipe Bressanim Pereira, popularmente conhecido como Felca, postou um vídeo-denúncia falando sobre a exploração e o abuso de crianças e adolescentes nas plataformas digitais, levantando um debate sobre a “adultização” de menores de idade na internet.

Assim, a alta nos registros de violência é um indicador ambivalente: por um lado, revela uma realidade que precisa ser combatida, a fim de proteger a infância e promover um futuro mais próspero; por outro, sinaliza um possível avanço na capacidade da sociedade de enfrentar e expor um crime que, antes, era invisibilizado, ou sobre o qual não era jogada a devida luz.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de Outubro de 2025.