Depois de quase 10 anos ensinando na rede pública, o professor Jomário Ferreira precisou se afastar da sala de aula. Foi durante a pandemia que a ansiedade e a depressão vieram à tona. “Foi tanta cobrança que eu disse em uma reunião on-line: ‘Olha, não diga que somos os salvadores da pátria’. Eu não estou conseguindo nem me salvar”, lembra. O estresse, porém, não ficou restrito àquele período, já que os fatores que o fizeram adoecer não desapareceram com a retomada das aulas presenciais. Infelizmente, essa pressão que o levou à exaustão física e mental reforça o resultado da Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis 2024), que, ao estudar e comparar a educação em 53 países, chegou à conclusão: o professor está adoecendo.
Embora o problema atravesse todas as etapas do ensino, ele torna-se ainda mais evidente nos anos finais do Ensino Fundamental, que vai do 6o ao 9o ano — pelo menos no Brasil. É nesse ponto que o desgaste acentua-se e o entusiasmo costuma dar lugar ao cansaço. Para se ter ideia de quanto os professores estão estafados, no relatório divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cerca de 20,9% dos docentes brasileiros relataram viver sob alto nível de estresse e 16,5% já sentem reflexos na saúde mental. Entre as principais causas, estão a pressão pelos resultados dos alunos — 66,3% contra 45% da média da OCDE —, a sobrecarga de provas e correções (59,8%) e o tempo perdido para manter a ordem em sala, que chega a 21% das aulas. Além disso, 44% dos entrevistados disseram, ainda, ser frequentemente interrompidos pelos alunos. No Brasil, a pesquisa ouviu docentes de 342 escolas e foi conduzida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
A conta não fecha
Jomário conhece bem o peso que a rotina escolar exerce sobre quem educa. Primeiro, ingressou na Educação Básica, na qual encarou seu maior desafio como docente; depois, atuou como professor substituto na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), conciliando as duas jornadas. Na rede pública de Serra Branca, encarou uma carga horária de 30 horas semanais que, à primeira vista, parecia até equilibrada, mas escondia uma matemática impossível: 20 horas em sala, cinco de planejamento e outras cinco dedicadas a estudos e correções de atividades em casa. “Mas professor nenhum consegue dar conta de seis a 10 turmas com apenas cinco horas por semana de correção ou planejamento”, aponta.
Ele costuma comparar o ato de dar aula à preparação de um atleta. Não é simplesmente chegar e correr uma maratona, assim como não basta abrir o livro em determinada página e começar a ensinar. É preciso compreender o conteúdo, planejar e criar conexões que façam sentido para o aluno. Porém, sem o tempo adequado, ele reconhece que nem sempre é possível oferecer a melhor aula. “Já cheguei a lecionar para o 6o, 7o, 8o e 9o anos, quatro turmas diferentes, com quatro tipos de conteúdos. Era extremamente cansativo”. Não à toa, o entusiasmo foi dando lugar à exaustão, agravada pelo desinteresse dos alunos e pela falta de reconhecimento, tanto das famílias quanto da própria gestão. “Cada vez mais não podemos frustrar o aluno, nem posso dizer que ele está errado. Se fizer isso, fica malvisto. E quem acaba frustrado é você”, desabafa.
Hoje, o professor afastou-se mais uma vez da escola. Primeiro, por conta de uma licença e, depois, por decisão própria. Não tem mais aquela vontade de voltar à sala de aula, embora seu retorno já tenha data marcada: janeiro de 2026. Com a ansiedade à flor da pele, faz terapia semanalmente e voltou a usar ansiolíticos.
Contratos precários aplicam lógica de mercado à docência
Para o pedagogo Marcus Quintanilha da Silva, doutor em Educação e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o caso de Jomário não é isolado, mas sintoma de um sistema que há muito tempo adoece o profissional. Segundo ele, essa realidade não é exatamente nova, mas tornou-se mais visível porque, hoje, há mais espaço para falar sobre isso. A diferença está na escala e na intensidade. “A carreira não garante a valorização, mas não há ‘valorização’ sem ela. A fuga não é um fenômeno exclusivo da profissão docente, mas de todas que sofrem pela intensificação do trabalho e a consequente piora nas condições de vida”, analisa o especialista. Marcus explica que o problema não se resume à sobrecarga de turmas ou tarefas, mas a um modelo que transforma o magistério em um “exercício de resistência” dentro de um sistema guiado pela lógica de mercado.
Em outras palavras, mesmo sendo o professor quem forma cidadãos e sustenta o projeto de sociedade, ele também está sujeito à precarização dos vínculos e à pressão por desempenho, fatores que intensificam o trabalho escolar e esvaziam o verdadeiro sentido da docência. Para ele, não há valorização sem uma carreira estruturada que garanta estabilidade e dignidade à profissão. “Quando eu intensifico o trabalho de um docente, deixo de contratar outro, reduzindo custos sob a lógica de mercado. O fenômeno do desgaste tem nisso seu ponto de partida”, aponta. Não por acaso, as observações do pedagogo convergem com o panorama traçado pela pesquisa Talis — Teaching and Learning International Survey, em inglês —, que revela que 14% dos professores brasileiros não se sentem valorizados pela sociedade, índice abaixo da média da OCDE, de 22%. Além disso, 73% deles trabalham meio período e 36,5% dos professores que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental possuem contratos temporários, quase o dobro da média observada nos demais países (19,3%).
Como consequência desse cenário, a sobrecarga de trabalho aparece entre os fatores que mais contribuem para o adoecimento dos professores. Quase metade dos entrevistados relatou sentir altos níveis de pressão diante do alto volume de tarefas. Mas, além das exigências do próprio sistema, há uma dimensão social que não pode ser ignorada: a transferência para a escola da responsabilidade integral sobre os estudantes. Segundo Marcus Quintanilha, há famílias que, por vulnerabilidade ou falta de políticas públicas, não conseguem acompanhar de perto o processo educativo — e a escola, sozinha, não dá conta. “Em linhas gerais, a maioria dos casos em que temos desafios com os estudantes está atrelada à vulnerabilidade social. Essa não é uma justificativa, mas uma explicação que vai além da política educacional e toca o íntimo das condições de vida das famílias”, analisa.
Entre a frustração e o entendimento que a escola é um caminho para transformação
O cenário descrito pelo especialista também se reflete na rede privada, onde o adoecimento não é menos frequente. Paulo (nome fictício), professor dos anos finais do Ensino Fundamental em um município do Sertão paraibano, conta que, embora as condições sejam melhores na escola particular, a pressão e a sensação de esgotamento são semelhantes. O tempo de preparação, o esforço para manter a turma concentrada e o acúmulo de demandas administrativas acabam pesando na saúde mental. “A gente se sente muito frustrado quando não consegue dar aquela aula que planejou”, diz, destacando que a desvalorização é um dos motivos que mais abalam o emocional do professor. E acrescenta: “O aluno, muitas vezes, não percebe o quanto a gente se esforça e pesquisa para dar uma boa aula. Na parte da manhã, eu planejo. À tarde, estou na escola. E no período da noite, pesquiso sobre futuras atividades”, detalha Paulo, que preferiu não se identificar por medo de represálias.
Segundo o docente, que atua há três anos na rede privada, o desrespeito em sala e o mau comportamento dos alunos têm minado sua motivação pouco a pouco. “Chega a um ponto em que a gente se questiona se, realmente, essa profissão ainda vale a pena”, desabafa. No fim, esse ciclo constante de esforço e frustração gera uma sensação de impotência difícil de lidar que acaba reforçando, dia após dia, a sensação de cansaço. “É a profissão que eu escolhi para a minha vida. Saímos da faculdade com muitos sonhos, querendo ser o melhor professor, mas a realidade mostra o contrário”, reflete o docente.
Futuro
Apesar do desânimo que afeta boa parte da categoria, ainda há quem encontre motivos para permanecer na escola. Rayane Albuquerque, professora nos anos iniciais do Ensino Fundamental em uma escola particular de Sapé, é uma delas. “A educação é o único meio para transformar uma sociedade. Ela é a arma mais poderosa que temos”, diz, com a convicção de quem vê sentido no que faz. Para Rayane, que acumula 15 anos de experiência como professora, o segredo está na valorização e no ambiente escolar. “Eu tenho a sorte de trabalhar em uma instituição com profissionais incríveis, com uma direção muito humana, que realmente me enxerga, não apenas como profissional, mas como pessoa”.
Na prática, quando o reconhecimento existe, a docência deixa de ser uma batalha tão solitária. Segundo ela, a relação de respeito também precisa estender-se às famílias, o que faz toda a diferença na hora de enfrentar os desafios do dia a dia. Esse apoio influencia diretamente na forma como o professor encara o cotidiano. “A maior parte dos pais tem um bom acolhimento e respeito pelo professor, o que me deixa muito feliz. Acredito que o ambiente influencia muito meu trabalho”, conta. E, claro, o fato de lidar com crianças também pesa a seu favor, já que o processo de alfabetização flui de forma mais leve e recompensadora. “Estamos lidando com crianças, e não com adolescentes. Então, ainda temos certa autoridade”, pontua, comparando seu trabalho ao de professores dos anos finais.
Mesmo assim, a Talis 2024 mostra que ser professor ainda é um desafio. Entre os docentes brasileiros que lecionam do 1o ao 5o ano do Ensino Fundamental, 14,7% relataram sentir muito estresse e 12,7% afirmaram que o trabalho impacta a saúde mental — índices menores que a média internacional, mas ainda preocupantes. Além disso, 7,3% dizem não ter tempo para a vida pessoal. Diante desse cenário, Rayane defende a importância de estabelecer limites e preservar o autocuidado. “Eu acredito que o profissional precisa, sim, tirar um tempo para si, até porque, quando você não faz isso, a sua entrega na escola fica defeituosa. Se eu não estou bem, não consigo entregar o meu melhor para os meus alunos”, conclui.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de novembro de 2025.

