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cultos afro-brasileiros

Religiões mantêm legado ancestral

publicado: 17/11/2025 08h48, última modificação: 17/11/2025 08h48
Oralidade e musicalidade marcam Jurema, Umbanda e Candomblé, que se firmaram na PB apesar da perseguição
2025.11.07 Religiosidade afrobrasileira_Mãe Renilda © Carlos Rodrigo (13).JPG

Mãe Renilda ressalta a participação das mulheres no Candomblé | Fotos: Carlos Rodrigo

por Samantha Pimentel*

As religiões afro--brasileiras surgiram no país durante o processo de colonização e da escravização de pessoas negras trazidas da África. Para preservar sua fé e práticas sagradas, esses povos desenvolveram estratégias de resistência, como o sincretismo com o cristianismo e a incorporação de elementos de rituais indígenas — também perseguidos no período colonial. Essas tradições são marcadas por forte musicalidade, cantigas, danças, vestimentas e rituais sagrados. A oralidade exerce papel essencial, transmitindo saberes e costumes entre gerações.

Apesar de sua importância cultural e histórica, essas religiões são alvo de preconceito desde sua origem, resultado do racismo que ainda atravessa a sociedade. Os praticantes das religiões de matriz africana reforçam que o termo correto, inclusive jurdicamente, para esse tipo de discriminação é racismo religioso, e não intolerância religiosa, já que — como destacam — “ninguém demoniza os deuses greco-romanos”.

O historiador, professor e pesquisador Valdir Efun Lourenço e Lima, de Santa Rita, autor do livro “Cultos afro-paraibanos: Jurema, Umbanda e Candomblé”, explica que o culto à ancestralidade chegou ao Brasil “nos porões dos navios tumbeiros, no processo da diáspora africana”, sendo ressignificado no território brasileiro e dando origem ao Candomblé — considerado a primeira religião afro-brasileira. Contudo, antes mesmo do Candomblé, já existiam cultos ancestrais dos povos originários, como o Jarê, na Bahia, o Catimbó e a Jurema, esta muito forte no Nordeste e especialmente na Paraíba. 

Religiosidade e elementos da natureza estão estreitamente ligados

Com a chegada da população africana escravizada, ocorreu uma hibridização: essas práticas indígenas passaram a incorporar elementos das tradições negras.

Na Paraíba, conforme explica o pesquisador, o desenvolvimento dos cultos afro deu-se de forma distinta da observada no restante do país: primeiro surgiu a Jurema, depois a Umbanda e somente mais tarde o Candomblé. “Teve um percurso inverso aqui. O Candomblé é baiano, ele surge na Bahia e chega à Paraíba apenas na década de 1970”, afirma.

Inicialmente, no estado, os cultos da Jurema estavam concentrados na região de Alhandra, entre os povos originários. Com o tempo, outras pessoas passaram a integrar essas práticas, que também receberam influências negras.

Ainda segundo o pesquisador, o racismo contribuiu para a perseguição e estigmatização dessas religiões. Ele cita, por exemplo, episódios ocorridos a partir de missões cristãs na Nigéria, quando a imagem de Exu — divindade que faz a comunicação entre o mundo terreno (aiê) e o espiritual (orum) — foi demonizada. Essa visão deturpada repercutiu nas religiões afro-brasileiras e em seus praticantes.

Diferenças

O pesquisador Valdir Efun Lourenço e Lima de Santa Rita explica que, apesar da hibridização, as religiões afro-brasileiras mantêm características próprias. O Candomblé recria o culto aos orixás, que na África eram venerados separadamente. No Brasil, os cultos foram reunidos, originando a religião. Outra marca é o uso de línguas africanas nos ritos, conforme a nação de origem.

A Umbanda surgiu no Rio de Janeiro entre o fim do século 19 e início do 20, espalhando-se pelo país e ganhando identidades locais. Na Paraíba, recebeu forte influência do nagô pernambucano, aproximando-se do Candomblé. Suas rezas e cantigas são em português. É sincrética: relaciona orixás a santos católicos e, em alguns lugares, incorpora elementos do Kardecismo.

A Jurema Sagrada também realiza seus rituais em português e reúne elementos indígenas. No culto atuam caboclinhos, pretos velhos e entidades como Exu e Pombagira. Assim como as demais religiões afro-brasileiras, trabalha com cura, equilíbrio espiritual e harmonia, além de manter uma relação fundamental com elementos da natureza.

Valdir Efun ressalta que essas religiões não buscam converter fiéis e valorizam o respeito às diferenças, acolhendo pessoas de todas as orientações sexuais e identidades de gênero. Segundo ele, são religiões com forte presença feminina e frequentemente alvo de discriminação por seu caráter inclusivo.

Protagonismo feminino

A ialorixá Mãe Renilda Bezerra, presidente da Federação Independente dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado da Paraíba, destaca que as pessoas negras, quando sequestradas da África, foram forçadas a abandonar sua cultura, incluindo sua religião. Ela relata que, no século 19, em Salvador, três mulheres iniciaram o Candomblé no Brasil. Durante a Ditadura, os terreiros eram alvos de invasões e violência: “Batiam nas pessoas, inclusive eu apanhei”, relembra. No governo de João Agripino, foi criado um decreto garantindo a liberdade de culto; porém, mesmo com a legislação, ainda havia vilipêndio aos cultos. Como consequência, os terreiros eram construídos nos fundos das casas, para não chamar atenção.

Segundo Mãe Renilda, o Candomblé consolidou-se, na Paraíba, durante a década de 1970. Ela enfatiza que a religião é marcada pelo cuidado e acolhimento: “Independente de cor, classe social ou orientação sexual, estamos aqui para receber a todos”. Para ela, o Candomblé representa o fortalecimento do ori — palavra do iorubá que refere-se à ligação espiritual — e a possibilidade de expressar essa espiritualidade por meio dos orixás. A líder religiosa explica que existem mais de 400 orixás, mas apenas 16 são cultuados no Brasil. “Os demais ficaram na África; esses foram os que vieram para o país com vontade de cuidar da gente”, afirma.

Apesar dos avanços, Mãe Renilda ressalta que o racismo religioso ainda está presente. Ela relata ter sido vítima em 2024, quando uma mulher a prendeu em um elevador enquanto participava de um evento. O caso foi judicializado como racismo. “Hoje existe o crime religioso. Do ponto de vista da legislação, avançamos, e órgãos como o Ministério Público, aqui na Paraíba, estão atentos a isso”, destaca. Ela acrescenta que o Governo do Estado tem dialogado com ela e outras lideranças para a construção de políticas públicas de enfrentamento do problema.

Hibridismo espiritual que homenageia divindades locais

Pai Cleyton de Xangô explica que a Jurema Sagrada, originalmente chamada Catimbó Jurema, surgiu da fusão entre cultos indígenas e africanos. Escravizados que escapavam das senzalas conviviam com povos indígenas em quilombos e aldeias, participando de seus rituais e mantendo seus próprios cultos. Dessa troca nasceu a Jurema.

Pai Clayton de Xangô conta um pouco da história da Jurema | Foto: Arquivo pessoal

A diferenciação principal está na ancestralidade reverenciada: enquanto as religiões de matriz africana cultuam ancestrais do continente africano, a Jurema homenageia ancestrais locais — espíritos de pessoas que viveram no território e retornam como divindades. Essas entidades organizam-se em falanges, como caboclos, pretos velhos e mestres, cujas histórias são preservadas pela oralidade.

Os rituais da Jurema assemelham-se às práticas indígenas e incluem oferendas às divindades. O nome também remete a uma árvore sagrada, da qual se produz o vinho ritualístico chamado “Jurema”; uma das entidades cultuadas também recebe esse nome.

Por causa do racismo religioso, o termo original “Catimbó” — de origem indígena e ligado ao uso do cachimbo — passou a ser usado de forma pejorativa, levando à adoção do nome “Jurema Sagrada”. Na atualidade, porém, há um movimento de retomada e ressignificação do termo “Catimbó”. Pai Cleyton afirma que leis e políticas públicas têm ajudado a reduzir o preconceito, embora a discriminação ainda exista.

Umbanda e o sincretismo

Quando os africanos escravizados chegaram ao Brasil, seus cultos religiosos passaram a receber influências, tanto das práticas espirituais dos povos originários quanto do processo catequético imposto pela Igreja Católica.

Pai Geraldo de Oxóssi, da Casa de Iemanjá Dodê, relata que desse encontro nasce a Umbanda, manifestação caracterizada por caboclos, pela associação de orixás a santos católicos e pela incorporação de traços do Candomblé, religião também formada no Brasil.

Na Umbanda, algumas das divindades cultuadas são as mesmas do Candomblé, como Exu, Ogum, Oxóssi e Iemanjá, mas também estão presentes Caboclos, Pretos Velhos, Pombagiras e outras entidades. Os rituais são marcados pela musicalidade, elemento comum às religiões afro-brasileiras. Pai Geraldo destaca que um dos diferenciais da Umbanda é o idioma das cantigas: “Toda tradição é fortalecida através das danças e das músicas, e o diferencial é que as cantigas da Umbanda são cantadas em português, diferente do Candomblé”.

Os rituais costumam ser acompanhados por instrumentos de percussão, como os atabaques, e cada entidade tem suas próprias cantigas e ritmos. Todo o aprendizado musical e ritualístico é transmitido pela oralidade, de geração em geração, característica que marca as tradições afro-brasileiras. Durante essas cerimônias, é comum que as divindades incorporem nos médiuns, assim como ocorre no Candomblé e na Jurema.

Sobre o racismo religioso, Pai Geraldo afirma que ele continua presente na sociedade: “Infelizmente, ela é construída sobre esse pilar. Embora façamos o enfrentamento, ainda há muitos casos de racismo religioso”. Ele reconhece os avanços conquistados com legislações, políticas públicas e direitos voltados às populações de terreiro, mas ressalta que a luta permanece. Para ele, a educação é uma das principais ferramentas de fortalecimento e de conhecimento dos próprios direitos por parte dos praticantes dessas religiões.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de novembro de 2025.