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Festival exalta saberes e legado da capoeira

publicado: 21/11/2025 08h32, última modificação: 21/11/2025 08h32
Objetivo é salvaguardar manifestação, considerada patrimônio cultural imaterial
2025.11.20 2° Festival de Capoeira © Leonardo Ariel (40).JPG

Coordenado pelo Iphan, evento reuniu, no Parque Solon de Lucena, 12 grupos que praticam a luta na Paraíba | Fotos: Leonardo Ariel

por Nalim Tavares*

O evento Nossa Ancestralidade Vive em Nós transformou, ontem (20), o Parque Solon de Lucena em um espaço de reconhecimento e fortalecimento da cultura negra em João Pessoa. Coordenado por servidores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em parceria com os mestres capoeiristas Charada e Mestiço, o festival reuniu 12 grupos de capoeira do estado para dar visibilidade às práticas culturais ancestrais e transmitir os saberes e a memória afro-brasileira.

Em alusão ao Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado anualmente em 20 de novembro, a programação do evento, que foi das 8h às 17h, contou com oficinas de capoeira, dança afro e maculelê, além de apresentações artísticas, música e uma roda de conversa sobre memória, identidade e tradição. Considerada um patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 2014, e do Brasil pelo Iphan desde 2008, a capoeira permite o desenvolvimento de companheirismo, solidariedade e do saber comunitário — portanto, é vista como um dos caminhos para o fortalecimento da ancestralidade no contexto urbano.

Técnico do Iphan e um dos organizadores do evento, Marcos Vinicius Ribeiro conta que o instituto sempre lutou para salvaguardar o patrimônio. “A partir do momento em que um bem é identificado, é preciso alcançar seus detentores e trabalhar com eles para preservá-lo. Um evento como esse, na verdade, é resistência e história viva acontecendo”, explica. “A capoeira era criminalizada até 1930 e, hoje, estamos aqui com esses grupos, ocupando território, trazendo crianças e demonstrando o sentido de pertencimento dessa arte, dessa técnica. Ver esse pessoal reunido aqui, preservando a cultura, e saber que eu estou nessa luta aquece o coração. Isso é identidade, memória, resistência e orgulho”. 

Segundo o Mestre Charada, da Associação Cultural Cobra Coral Capoeira, o objetivo da organização é agregar cada vez mais grupos ao festival. Idealizador do festival, há três anos, ele convidou os amigos capoeiristas da Paraíba para fazer uma roda, em celebração ao Dia de Zumbi. “Transformamos a roda em festival e essa é a segunda edição. Só que nós não tínhamos recursos para organizar um evento por conta própria, então o Iphan se juntou a nós, para contribuir e conseguir parcerias. Além de integrar, esperamos passar nossa história para as novas gerações, para que elas possam dar continuidade a esse legado que foi deixado para nós”, conta.

O Mestre Mestiço, da Associação Grupo de Capoeira Ginga Paraíba, reforçou que toda a programação do dia foi pensada para mostrar a importância da cultura e das tradições afro-brasileiras para as crianças que integram os grupos capoeiristas do estado. “É um momento de unificar os povos, juntar as nossas comunidades, porque a capoeira não é apenas um trabalho educativo, como também comunitário”, elucidou. Ele acrescentou, ainda, que o evento foi aberto ao público para que todos pudessem participar desse diálogo, interessado em mostrar que a presença negra ainda enfrenta invisibilidade, por mais marcante que seja.

Resistência

O superintendente do Iphan na Paraíba, Jivago Barbosa, lembra que, “infelizmente, ainda vemos onde o passado escravocrata está presente nos dias de hoje. Por isso, eventos como esse não representam apenas a resistência, mas também a transmissão de um legado. É um movimento de superação desse passado”. Ele conta que, na década de 1990, costumava jogar capoeira e percebia o olhar desconfiado das pessoas quando saía com o abadá, do Teatro Lima Penante, no Centro de João Pessoa, até a casa onde morava, em Jaguaribe. “Além do preconceito contra a própria capoeira, tinha também o preconceito contra as religiões de matriz africana. Por isso, é muito importante reconhecer esses grupos e a importância deles para a identidade brasileira”, comenta.

A inscrição da Roda de Capoeira na lista de bens imateriais relacionados aos movimentos de luta contra a opressão trouxe visibilidade para essa expressão cultural. No entanto, Jivago lamenta que ainda é difícil garantir a valorização prevista no projeto de salvaguarda coordenado pelo Iphan.

Elaine Lopes, técnica do instituto, explica que, desde 2008, cada estado brasileiro destacou diretrizes para ajudar a preservar e transmitir o bem. “Um desses eixos, por exemplo, é a capoeira nas escolas paraibanas, introduzida de forma permanente, e não esporádica, para que crianças e adolescentes possam ter contato com essa expressão cultural dentro do currículo escolar”, esclarece. Assim, um evento como o Nossa Ancestralidade Vive em Nós não só valoriza os saberes e trajetórias dos mestres capoeiristas, como também ajuda a criar uma ponte entre os grupos e as novas gerações, por meio da expressão do corpo, da música e das palavras.

Um dos pioneiros da capoeira em João Pessoa, o Mestre Sabiá, da Associação Cultural de Capoeira Badauê, defende: “É muito importante que as novas gerações conheçam a nossa história, e a história do Quilombo dos Palmares, que é um dos nossos maiores símbolos de liberdade”. Segundo ele, a capoeira é sinônimo de história. “É um resgate de identidade e de valores, e é sobre união e companheirismo. Para mim, capoeira é ancestralidade. Praticar capoeira não é aprender a brigar, mas, sim, aprender a arte de um povo que lutou, se expressou e batalhou por liberdade”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de novembro de 2025.