Enquanto lutam pelo território onde vivem, pela liberdade de se expressar livremente e por uma existência digna, entre tantos outros direitos fundamentais, eles também precisam batalhar, muitas vezes, pela própria vida. Esse é o desafio enfrentado, atualmente, por 40 pessoas na Paraíba, que estão sob o acolhimento do Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PepDDH), implementado em 2021, em convênio com o Governo Federal. São lideranças ameaçadas por defender causas sensíveis, como a preservação do meio ambiente, o direito à terra, o combate ao racismo, além da proteção de minorias.
No Brasil, são mais de 1.400 defensores contemplados pelo programa, que, só na última década, registrou um aumento superior a 1.300% nos pedidos de proteção. O que mais chama atenção, entretanto, é a concentração de casos no Nordeste, onde 532 pessoas foram acolhidas após sofrerem ameaças que tentaram — e ainda tentam — silenciar suas vozes. A região lidera o número de protegidos no país, ficando à frente do Norte, com 383 casos, e do Sudeste, com 292. Nesse cenário, a Paraíba aparece na 21a posição do ranking nacional e em sétimo lugar entre os nove estados nordestinos. Dos 40 atendidos por aqui, há 19 casos individuais e dois grupos em proteção coletiva — um com sete pessoas e outro com 14 —, sem contar com dois casos ainda em análise.
Perfis
O que as estatísticas não mostram, porém, é o drama enfrentado por quem ousa desafiar interesses de grupos ou indivíduos que operam dentro e fora do sistema. São pessoas que, ao confrontar práticas abusivas ou defender direitos, acabam expostas a um cenário de vulnerabilidade, em que a violência não é apenas física, mas também psíquica e moral. De acordo com Natasha Batusich, gerente operacional de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano (Sedh), responsável pela coordenação do programa no estado, o perfil dos defensores é diverso. Dos 19 casos individuais atendidos na Paraíba, apenas dois não têm relação direta com disputas por terra, moradia ou território: um envolve uma comunicadora e o outro, uma liderança religiosa de matriz africana, ameaçada por intolerância. “Os demais têm, sim, essa relação, seja com a luta pela reforma agrária ou por moradia, pessoas atingidas por barragem, indígenas — especialmente das etnias Tabajara e Potiguara — e quilombolas”, afirma.
O relatório mais recente do PepDDH confirma esse panorama: seis situações envolvem territórios indígenas, outras seis dizem respeito a conflitos fundiários, duas são de comunidades quilombolas e duas ligadas à luta por moradia. Há ainda um atendimento relacionado a uma comunidade ribeirinha e outro a pessoas atingidas por barragem. Em termos de gênero, 74% dos atendimentos envolvem homens e 26%, mulheres. Já no recorte de raça, 36% são pessoas pretas; 32%, indígenas; e 32%, pardas.
Além da diversidade de causas, os defensores também estão distribuídos por diferentes regiões do estado, o que evidencia a capilaridade do programa de proteção. Há pessoas protegidas em cidades como João Pessoa, Conde, Pedras de Fogo, Cruz do Espírito Santo, Alhandra, Marcação, Rio Tinto, Itatuba, Natuba, Aroeiras e Belém.
Ameaças
Do lado dos ameaçadores, Natasha confirma que, assim como no resto do Nordeste, na Paraíba, os principais algozes são fazendeiros, empresários e agentes de segurança pública. Mas a gerente operacional de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos chama atenção para um novo e crescente fator de ameaça: o crime organizado. “Temos notado a presença do crime organizado nos territórios de luta, onde essas comunidades estão inseridas, como um fator ameaçador e, muitas vezes, associado ao conflito”, explica. A reação do crime organizado à mobilização das comunidades tem sido ocupar territórios onde antes não atuava, juntando-se aos fatores de ameaça já existentes.
Ameaça, aqui, é entendida em sentido amplo: vai de agressões, tentativas de homicídio e intimidações até retaliações políticas, econômicas ou culturais. Qualquer ação que vise silenciar, deslegitimar ou punir, comprometendo a segurança e a atuação deses defensores, é tratada como violação aos seus direitos.
Instituições parceiras ajudam a garantir apoio e segurança
Da ameaça velada ao risco iminente, o que acontece quando o confronto de interesses transforma-se em risco real a quem se opõe a uma injustiça? É nesse contexto que o PepDDH entra em cena, com sua rede de apoio e proteção, que inclui uma equipe técnica multidisciplinar, composta por profissionais de Psicologia, Serviço Social e assessoria jurídica. Além disso, segundo Natasha Batusich, o programa atua em rede com instituições parceiras, como a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Defensoria Pública do Estado (DPE), o Ministério Público da Paraíba (MPPB) e as secretarias da Mulher e Diversidade Humana (Semdh) e de Segurança Pública e Defesa Social (Sesds) — sem falar na própria Sedh.
Mas, diferentemente do que se vê no cinema, em que a vítima ameaçada passa a viver em sigilo, o programa propõe-se a protegê-la em seu próprio território. O objetivo, conforme Natasha, não é afastar a pessoa de sua luta, mas garantir condições para que permaneça nela, com segurança, preservando ao máximo identidade, conexões e atuação. “O programa articula uma rede de proteção que envolve tanto a Sesds quanto o coletivo no qual essa pessoa está inserida, fortalecendo a autoproteção”, explica. Isso pode incluir desde o fornecimento de equipamentos de segurança até a realização de audiências públicas, como no caso de uma comunidade ameaçada por agentes da segurança. “Organizamos uma audiência, reunindo vários atores, para afirmar que o Estado está presente ali, o que inibe e tira a força dos algozes”.
Outro exemplo envolveu uma liderança indígena em risco iminente de vida, cuja retirada da aldeia era inviável. “Tirar o cacique é dar tudo o que o algoz quer. Há um vínculo com o território e a ancestralidade que precisa ser respeitado”, frisa Natasha. A solução encontrada foi articular, junto à Sesds, a intensificação das rondas policiais na região. “A gente conseguiu fazer isso e o defensor segue vivo”, pontua. Já em Princesa Isabel, o assassinato de um líder comunitário demandou do PepDDH um trabalho ainda mais amplo. “A comunidade estava em condição de ameaça, porque a existência dela era a questão. O programa tem desenvolvido metodologias e formas de proteção não só para um indivíduo ou família, mas todo um coletivo”, detalha a gerente operacional.
Acolhimento
Quando o risco à integridade física é extremo, há, sim, a possibilidade de aplicação de uma medida excepcional: o acolhimento provisório. Nesse caso, a pessoa pode deixar temporariamente o território, com base em uma análise criteriosa de risco. “Mas essa é uma situação de exceção, não a regra do programa”, reforça Natasha.
A porta de entrada é sempre uma situação concreta de ameaça, que chega por denúncia ou encaminhamento. A partir daí, a equipe técnica faz uma escuta inicial, avalia o cenário e elabora a estratégia mais adequada para garantir a proteção do defensor. Cada caso é analisado com base no risco e nas condições daquele território. E, assim como a entrada depende de critérios específicos, a permanência também é avaliada constantemente. Há quem saia do local porque a ameaça diminuiu, o contexto mudou ou, simplesmente, porque escolheu seguir sozinho. Mas também há desligamentos por descumprimento das regras, informações falsas ou condenações por práticas contrárias aos Direitos Humanos. Segundo Natasha, a proteção, em regra, dura dois anos e pode ser prorrogada, se for necessário.
Organização
Na Paraíba, a execução do PepDDH é feita em parceria com a organização da sociedade civil (OSC) Casa Pequeno Davi, que também é responsável pela execução de outra ação desse tipo no estado, o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCaam). Além dele, a Paraíba também mantém ativo o Provita, que atende vítimas e testemunhas sob ameaça.
Natasha ainda destaca que o PepDDH mantém uma articulação permanente com os demais estados, o que permite trocas de experiência, alinhamento de práticas e participação em encontros nacionais que fortalecem a execução da política pública.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de julho de 2025.