No coração de Sapé, a 55 km de João Pessoa, ergue-se um lugar que é mais do que um museu; um templo da memória e da dignidade do povo do campo. O Memorial das Ligas e Lutas Camponesas guarda, em suas paredes, objetos e arquivos, a essência de uma história marcada por resistência, esperança e luta pela terra. Ali, cada fotografia, cada documento, cada depoimento registrado ecoa como testemunho da força de homens e mulheres, que enfrentaram o latifúndio e escreveram capítulos decisivos da história brasileira.
O espaço tem como sede a casa onde viveram João Pedro e Elizabeth Teixeira, casal símbolo da luta camponesa. Tombada como patrimônio histórico pelo Estado da Paraíba, em 2018, a residência, localizada no Sítio das Antas do Sono, foi restaurada e, hoje, preserva um dos mais significativos legados da luta pela terra no Brasil.
Em fevereiro deste ano, o memorial também solicitou, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o tombamento em nível federal do território e da casa, o que inclui uma área rural de mais de sete hectares. “Aqui, as pessoas não encontram apenas objetos. Elas se encontram consigo mesmas, com sua história, com suas raízes. É um lugar de acolhimento da memória”, afirma Alane Lima, coordenadora do memorial.
Criado como Memorial João Pedro Teixeira, em homenagem ao líder assassinado em 1962, o espaço se consolidou em 2006, quando a ONG Memorial das Ligas e Lutas Camponesas foi fundada na Comunidade Tradicional de Barra de Antas, berço das primeiras ligas. Desde então, tornou-se ponto de encontro entre passado e presente, onde visitantes se reconhecem na luta coletiva que moldou o destino da Paraíba e do Brasil. Em 2023, o memorial foi premiado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), consolidando-se como referência nacional em preservação da memória social e camponesa.
Acervo
Ao entrar no local, o público encontra oito espaços de exposição permanente, com cerca de três mil itens. Estão ali utensílios do cotidiano camponês, documentos originais, objetos pessoais de lideranças e uma ala dedicada à trajetória de Elizabeth Teixeira, que atravessou o século como símbolo de coragem e resistência. Além disso, o memorial abriga um acervo digital com mais de sete mil arquivos, entre documentos, fotografias, jornais, vídeos e entrevistas, acessível por meio do site ligascamponesas.org.br/acervo.
Mas essas memórias não se limitam às estantes e aos registros virtuais. Em fevereiro, por exemplo, o local recebeu cerca de três mil pessoas durante as comemorações do centenário de Elizabeth. “Foi uma emoção imensa. Gente de toda a Paraíba veio homenagear essa mulher que não deixou a luta morrer”, lembra Alane.
Legado deixado pelo movimento segue inspirando mobilizações
A história que se respira no memorial está profundamente ligada às Ligas Camponesas, movimento que nasceu na década de 1950, inicialmente em Pernambuco, e que logo se espalhou pela Paraíba e por outros estados. Foi em Sapé que a mobilização ganhou maior expressão, chegando a reunir mais de sete mil filiados à Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Sapé.
João Pedro Teixeira, líder--fundador das Ligas Camponesas na Paraíba, transformou-se em mártir após ser assassinado em 2 de abril de 1962, em uma emboscada encomendada por latifundiários. Sua trajetória de luta foi inscrita, em 2018, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria do Panteão da Liberdade, em Brasília (DF). Casado com Elizabeth Teixeira, com quem teve 11 filhos, ele liderou, ao lado da esposa, a reivindicação por melhores condições de vida e pelo direito à terra para os trabalhadores rurais.
Elizabeth, por sua vez, converteu a dor em resistência. Tornou-se símbolo internacional da luta pela terra, enfrentando perseguições e mantendo viva a chama do movimento. “Ela sempre dizia que não lutava apenas pelos filhos dela, mas pelos filhos de todos os trabalhadores do campo”, conta Alane Lima.
O historiador Luiz Mário Burity reforça a importância das Ligas Camponesas no contexto nacional: “Antes mesmo do MST, os trabalhadores rurais da Paraíba já desafiavam a estrutura fundiária, denunciavam a violência dos latifundiários e defendiam a reforma agrária como projeto de sociedade. É impossível entender a luta pela terra no Brasil sem olhar para Sapé”.
Esse legado atravessou a Ditadura Militar, sobreviveu à repressão e continua inspirando novos movimentos sociais, sindicais e pastorais. Do enfrentamento da grilagem de terras às feiras agroecológicas, da defesa da água à conquista de assentamentos, a semente plantada pelas Ligas Camponesas ainda germina em lutas atuais.
“O memorial existe porque essas vidas não podem ser esquecidas. João Pedro, Elizabeth e tantos outros deram seu sangue para que as gerações futuras pudessem sonhar com dignidade no campo”, diz Alane. Nesse sentido, o espaço não é apenas uma lembrança do passado, mas um lugar de articulação para o presente e o futuro, onde a memória se transforma em combustível para novas batalhas.
Esforço coletivo e solidário ajuda a manter atividades do local
Manter viva uma memória tão rica, no entanto, exige esforço diário e apoio coletivo. O memorial funciona em regime de dedicação comunitária, com apoio modesto da Prefeitura de Sapé — que cedeu dois servidores da própria comunidade de Antas e cobre a conta de energia elétrica. O restante da manutenção depende de doações de pesquisadores, militantes e visitantes. “Recebemos apoio da comunidade, mas nosso sustento vem basicamente da solidariedade. O memorial vive de doações, porque acreditamos que essa história precisa ser acessível a todos”, explica Alane.
As atividades vão além da preservação do acervo: incluem rodas de conversa, debates sobre agroecologia, celebrações anuais em memória de líderes camponeses e projetos de educação popular com jovens de acampamentos e assentamentos. Além disso, o local atua em pautas concretas junto à comunidade, na produção de alimentos, e organiza caminhadas, atos e festival cultural.
A conquista de recursos também é parte dessa trajetória. Em 2021, o deputado Frei Anastácio (PT--PB) destinou emenda ao Orçamento da União para a requalificação do memorial, garantindo novo fôlego para preservação do espaço. “A gente precisa levar boas notícias, dizer que a gente resiste, que está aqui para continuar a história, para continuar contando e fazendo a memória daqueles e daquelas que morreram, que desapareceram, que foram torturados porque defendiam um projeto de vida melhor para brasileiros e brasileiras”, frisa Alane.
O futuro, lembra a coordenadora, depende da continuidade desse apoio coletivo: “Cada doação, cada visita, cada pesquisa feita no nosso acervo é um gesto que ajuda a manter essa memória pulsando”.
Doações
O Memorial das Ligas e Lutas Camponesas funciona de segunda a sexta--feira, das 8h às 16h, com entrada gratuita. Aos sábados e domingos, as visitas podem ser realizadas mediante agendamento prévio. Para grupos maiores, mesmo em dias de semana, também se recomenda o agendamento, a fim de garantir uma experiência bem conduzida e didática.
Já quem deseja contribuir com a manutenção e o fortalecimento das atividades do espaço pode fazê-lo mediante doações financeiras, voluntariado, parcerias institucionais ou entrega de livros, fotos, publicações e objetos relacionados à história das Ligas Camponesas. As contribuições financeiras podem ser realizadas via Pix (chave 09.065.416/0001-62) ou para a conta da ONG Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, na Caixa Econômica Federal, em Sapé (Agência 0922; Conta-Corrente 00001121-2; Operação 003).
Através deste link, acesse para agendar uma visita
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 08 de Outubro de 2025.