Infecção bacteriana de transmissão sexual, a sífilis tem avançado no Brasil. O fato é corroborado pelo “Boletim Epidemiológico de Sífilis”, publicado no mês passado pelo Ministério da Saúde. De janeiro de 2010 a 30 de junho de 2025, o país teve 1.902.301 casos de sífilis adquirida, e a taxa de detecção cresceu ao longo de quase toda a série histórica, atingindo o ponto mais alto em 2024, quando foram diagnosticados 120,8 casos a cada 100 mil habitantes. Já na Paraíba, de janeiro de 2010 a 30 de junho de 2025, foram registrados 14.418 casos de sífilis adquirida. Em 2023, foram 1.681 casos. No ano passado, o número subiu para 2.290 — correspondente a uma taxa de detecção de 55,2 por 100 mil habitantes, a maior em toda a série histórica.
Neste ano, até o mês de junho, de acordo com a Secretaria de Estado da Saúde (SES), houve 1.246 notificações de sífilis adquirida na Paraíba (taxa de 30,7 por 100 mil habitantes); 459 casos de sífilis em gestantes (taxa de 21,4 por mil nascidos vivos) e 94 casos de sífilis congênita (taxa de 4,4 por mil nascidos vivos). A infecção sexualmente transmissível (IST), que é exclusiva do ser humano, pode ser prevenida e tem diagnóstico, tratamento e cura disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS).
A infectologista Júlia Chaves explica que o número de casos de sífilis notificados deve-se, entre outros fatores, à maior oferta de exames para a detecção. “Hoje em dia, diferentemente de alguns anos atrás, todos os postos e unidades de saúde têm o teste rápido disponível”, afirma.
A médica também aponta que aspectos como o aumento da expectativa de vida, por exemplo, favorecem o prolongamento do período sexual ativo entre a população. “Como a principal forma de transmissão é a relação desprotegida, essa ampliação da vida sexual e o fato de que a sífilis se apresenta muitas vezes de forma assintomática são fatores que influenciam um maior intervalo de contágio, resultando em mais pessoas infectadas”, afirma Júlia Chaves.
Já o infectologista Fernando Chagas ressalta o impacto das mudanças comportamentais. “As novas formas de relações interpessoais e os aplicativos de encontros, por exemplo, facilitaram as relações entre as pessoas e, consequentemente, toda a dinâmica relacionada à questão sexual. Há também mais facilidade de se discutir a respeito. Muitos preconceitos já foram superados, embora ainda tenha tabus envolvidos”, analisa.
Fernando aponta que, apesar do avanço das discussões voltadas para a proteção e o acolhimento das pessoas infectadas, uma parcela grande da população expôs-se mais às ISTs. “Outro ponto é a facilidade da detecção. Por exemplo, na Paraíba, a gente teve muitos casos positivos porque também a gente pesquisou, testou e diagnosticou muitos casos”, afirma.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera, ainda, que o aumento mundial da quantidade de casos de sífilis tem sido relacionado a fatores como a baixa percepção de risco, o conhecimento limitado por parte da população sobre a doença, além do estigma que segue envolvendo as ISTs, o qual pode afastar as pessoas da busca por cuidado.
Sinais
A sífilis é uma doença silenciosa. A infectologista Júlia Chaves descreve que quem a contrai geralmente vê surgirem algumas manchas avermelhadas na pele, as quais logo desaparecem. “Após duas ou três semanas, esses sinais não são mais visíveis. Passando despercebida a doença, a pessoa infectada e assintomática pode transmitir a sífilis para outros, até que seja testada”, alerta.
Quando uma possível exposição acontece, em uma relação sexual desprotegida, seja pela ausência de preservativo ou porque a camisinha rompeu, medidas profiláticas podem ajudar. “É preciso lembrar não só do HIV, mas da sífilis também. O DoxiPEP, que é um meio de Profilaxia Pós--Exposição para sífilis, pode ser usado até 72 horas depois [da relação sexual]”, destaca. A médica orienta que o medicamento em questão, a doxiciclina, deve ser consumido em dose única de dois comprimidos, para evitar contrair a IST. “E vale lembrar que, se você tem exposição, precisa fazer exames de rotina para checar se há contaminação com sífilis e com outras ISTs, como hepatite C, hepatite B, HIV”, complementa.
A infecção pode ter complicações. Júlia Chaves descreve que a sífilis pode “imitar” várias doenças, com a aparição de nódulos no corpo inteiro e até a “simulação” de sinais e sintomas de câncer. “Nesses casos, só com a biópsia é que se faz o diagnóstico. Isso ocorre se a sífilis ficar terciária, ou seja, tardia. Com um diagnóstico precoce e o tratamento, evitam-se complicações. Se você voltar a se expor sexualmente, pode contrair novamente. Então tem que estar sempre de olho, ter o cuidado, prevenir e fazer exames de rotina”, comenta.
A manifestação dessa IST pode ocorrer em quatro fases: primária, secundária, latente e terciária. Os sintomas da fase primária costumam surgir de 10 a 90 dias após o contágio, com ferida localizada, podendo ser acompanhada de ínguas na virilha. Já os sinais da etapa secundária, como manchas avermelhadas no corpo, nas palmas das mãos e nas plantas dos pés, surgem de seis semanas a seis meses após a primeira lesão. Se passarem despercebidos e desaparecerem, mesmo sem tratamento, esses quadros podem evoluir para a fase latente, que é assintomática. Por fim, de acordo com informações do Ministério da Saúde, a forma terciária ou tardia da sífilis ocorre quando a doença não é tratada adequadamente. Isso impõe riscos, já que complicações graves, como lesões cutâneas, ósseas, cardiovasculares e neurológicas, estão passíveis de surgir.
Testes gratuitos estão disponíveis em Unidades Básicas de Saúde
De janeiro a setembro deste ano, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de João Pessoa, foram notificados 1.224 casos de sífilis adquirida na capital, sendo 862 em pessoas do sexo masculino e 362 do sexo feminino. Além disso, também foram registrados 377 casos de sífilis em gestantes e 85 casos de sífilis congênita, que ocorre quando a mãe, não tratada, passa a infecção para o bebê durante a gravidez ou no momento do parto.
A rede municipal de saúde oferta, nas unidades de saúde da família (USFs), o tratamento com aplicação de penicilina benzatina para pessoas com sífilis. “Para ser atendido, o usuário deve se dirigir à sua USF de referência e lá poderá realizar a testagem e o tratamento, conforme necessidade”, afirma a gerente de Vigilância Epidemiológica, Danielle Melo.
Além das USFs, o Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids e Centro de Testagem e Aconselhamento em ISTs (SAE-CTA) também disponibiliza testes rápidos e ações de prevenção contra a sífilis. O local é referência no atendimento e acompanhamento às pessoas com ISTs no município de João Pessoa. O SAE-CTA está localizado na Policlínica Municipal de Jaguaribe, na Avenida Alberto de Brito, no 411, em Jaguaribe. O horário de funcionamento é das 7h às 16h30, de segunda a sexta-feira.
Capazes de detectar a sífilis, e também hepatite B, hepatite C e o vírus HIV, os testes estão disponíveis em todos os postos e em todas as Unidades Básicas de Saúde do país, e podem ser feitos sem a necessidade de solicitação médica. O infectologista Fernando Chagas explica que quem já teve sífilis alguma vez pode obter um teste positivo. “Faz-se um outro teste que confirma se é sífilis mesmo ou se é só uma sorologia positiva porque a pessoa já teve a doença. E o tratamento é todo gratuito, você não precisa comprar nada. A penicilina benzatina, se possível, já é aplicada na hora, para a gente garantir que a pessoa fique curada”, conta.
O infectologista destaca que os parceiros, parceiras ou pessoas com quem se tenha relações sexuais com frequência também devem ser testados e, se necessário, tratados. “Não adianta você se tratar, curar completamente a sífilis, se a outra pessoa está com a bactéria e passa para você na próxima relação sexual. Já que, quando você pega a sífilis, não adquire imunidade contra ela, podendo contrair de novo se for exposto”, ressalta.
Para facilitar e ampliar o diagnóstico, o Ministério da Saúde disponibilizou acesso ampliado ao Teste Rápido Combo HIV/Sífilis, que identifica simultaneamente as duas infecções. Em 2025, a oferta aumentou em mais de 40%, totalizando 6,5 milhões de unidades. O exame permite o tratamento imediato, e é essencial para interromper a transmissão, inclusive entre as gestantes.
Transmissão vertical é uma preocupação entre as gestantes
O levantamento do Ministério da Saúde apontou também que as menores taxas de detecção de sífilis em gestantes no ano de 2024 foram registradas em estados da Região Nordeste, como Piauí (18,8 casos por mil nascidos vivos), Maranhão (19,1 casos por mil nascidos vivos) e Paraíba (19,4 casos por mil nascidos vivos).
A médica ginecologista e obstetra Kezia Navarro alerta que, durante a gravidez, a sífilis torna-se preocupante porque pode ser transmitida para o bebê pela placenta, o que é conhecido como “transmissão vertical”. Esse cenário causa a sífilis congênita, que pode levar a complicações como aborto espontâneo, parto prematuro, malformações, surdez, cegueira e até mesmo morte ao nascer. “O pré-natal é fundamental para garantir a saúde da gestante e do bebê. Durante o acompanhamento, são investigadas e identificadas precocemente condições que podem trazer riscos, como é o caso de infecções como a sífilis”, declara.
Uma das principais análises utilizadas na triagem da sífilis é o VDRL — sigla, em inglês, para “Venereal Disease Research Laboratory”, ou “estudo laboratorial de doenças venéreas”, em tradução livre. Parte dos exames pré-natais, o teste é feito a partir da coleta de amostra de sangue e possui indicação para diagnosticar a doença e acompanhar o tratamento.
A ginecologista e obstetra ressalta que o pré-natal deve incluir testagem para sífilis em momentos distintos da gestação e que o tratamento é simples, com penicilina benzatina e duração estimada de três semanas, a qual é segura para gestantes. “[Essa] é uma doença muito fácil de diagnosticar e de tratar, além de ser previsível. Apesar da facilidade e acessibilidade do tratamento, a sífilis ainda é um problema de saúde pública no Brasil, o que demonstra a importância de realizar pré-natal de qualidade, com testagem em tempo oportuno, tratamento adequado e acompanhamento do parceiro”, conclui Kezia.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de novembro de 2025.